ColunasNotíciasReportagens

À prova do tempo: a receita de bares e restaurantes que ultrapassaram a marca dos 50 anos

A história da churrascaria carioca Palace, na ativa desde 1951, e da centenária pizzaria Castelões, em São Paulo, entre outros empreendimentos lendários que se mantêm firmes e fortes

Por Daniel Salles

Em grandes metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro, ouvir falar de bares e restaurantes que ganharam um ponto final antes do primeiro aniversário é mais do que comum. Daí o fascínio que cercam os raros estabelecimentos que continuam na ativa por anos e anos e com os salões cheios — endereços longevos que se encontram em decadência, estes são vistos com facilidade.

Uma das churrascarias mais bem-sucedidas no Rio de Janeiro, a Palace abriu as portas em 1951. À frente do negócio desde 2011, Antonio Saraiva Filho, neto de um dos fundadores, credita a longevidade a uma porção de fatores. A decisão de não abrir filiais, sustenta, é um dos mais importantes. “Restaurantes como o nosso têm alma, que não dá para ser replicada”, afirma o empresário, que exerce o cargo de diretor. “Se tivéssemos cedido à ganância de montar uma rede, a churrascaria, certamente, perderia um pouco da sua essência”.

Continua após o anúncio

Ele acrescenta que o dinheiro nem sempre fala mais alto no que se refere à administração. “Pode soar como um clichê, mas enxergamos nossa equipe como uma família”, afirma. “É por isso que não demitimos ninguém na pandemia, incluindo os dois funcionários que ainda estavam em período de experiência”. Na mesma época, o empregado com mais tempo de casa — 52 anos — se aposentou. O atual decano entre os colaboradores trabalha na Palace há quarenta e poucos anos. E por falar em pandemia, só em 2024 o faturamento superou o de 2019.

O restaurante foi fundado por um grupo de portugueses, entre eles um tio e o avô de Saraiva Filho. Inicialmente, chamava-se Churrascaria Leme porque se encontrava no bairro de mesmo nome, mais exatamente na Avenida Princesa Isabel. A mudança, em 1962, para a Rua Rodolfo Dantas, que ladeia o Copacabana Palace, foi motivada por um incêndio no endereço antigo. A troca de localização marca a entrada no quadro societário de Antonio Saraiva, pai do atual diretor. O primeiro está com 85 anos e continua a dar expediente na churrascaria. 

O nome atual foi adotado em 1979 por razões óbvias. “Virou a maior confusão”, explica Saraiva Filho. “As pessoas pegavam um táxi e pediam para ir para a Churrascaria Leme, por exemplo, e eram levadas para a Marius Degustare, que fica no Leme”. Para dar fim a contratempos do tipo, o restaurante da família dele renasceu como Churrascaria Palace. 

O negócio sofreu diversas alterações ao longo dos anos. Adotou o imbatível sistema de rodízio em 1985. É uma inovação creditada à Churrascaria Matias, localizada na cidade gaúcha de Sapiranga. Certo dia, em meados dos anos 1960, os funcionários não conseguiram assar carne suficiente com antecedência. O jeito foi assar mais cortes na hora e, para acelerar o processo, cortá-los ainda no espeto, na frente dos clientes. Não demorou para o espeto corrido virar um sucesso replicado Brasil afora. 

Em 1996, a Palace inovou ao ofertar itens da culinária japonesa no bufê, além de frutos do mar. De 2011 em diante, passou a incluir cortes de carnes de caça no rodízio, a exemplo de búfalo, codorna, pato e avestruz. Hoje são cerca de 40 cortes, a R$ 242 por pessoa. “Sobrevivemos à passagem do tempo mantendo a relevância e sem abrir mão da tradição”, resume o diretor. Entre as opções fora da curva, o pirarucu selvagem faz enorme sucesso. O pescado é fornecido pela marca Gosto da Amazônia, que promove o manejo sustentável desse peixe na maior selva do planeta.

Palace
[/tie_slide]

    A lista de frequentadores célebres inclui nomes como Moacyr Luz e Zeca Pagodinho, entre outros que já se foram, como João Donato, Emílio Santiago, Charles Aznavour, Dias Gomes, Jorge Amado e Zélia Gattai. Quando se apresentava na cidade, a cantora portuguesa Amália Rodrigues tinha o hábito de receber convidados na Churrascaria Palace. E costumava ir para a cozinha do restaurante para preparar um bacalhau para eles com a ajuda dos funcionários.  

    Por essas e por outras, a churrascaria entrou, no ano passado, na lista dos 150 restaurantes mais lendários do mundo. Trata-se de um ranking elaborado pelo guia gastronômico europeu TasteAtlas. Dos quatro endereços brasileiros incluídos, o mais bem colocado é a Palace, em 74°. Os demais empreendimentos verde-amarelos que constam na lista são o Yemanjá, em Salvador (101º), e os paulistanos Mocotó (111º) e Bolinha (126º). 

    Em funcionamento desde 1907, o Bar Brasil, na Lapa, é um dos primeiros associados do SindRio, o Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio de Janeiro — este foi fundado em 1911. “O fato de a cidade dispor de muitos estabelecimentos com décadas e décadas remonta à época na qual ela era a principal potência econômica do país”, registra Fernando Blower, que preside o SindRio. “Se são bem-sucedidos, bares e restaurantes costumam despertar o interesse dos herdeiros dos fundadores, o que favorece a longevidade dos negócios”. 

    Do ponto de vista empresarial, as vantagens dos empreendimentos tradicionais são evidentes. “A memória afetiva dos clientes antigos faz com que eles retornem com frequência, e não raro na companhia de filhos e netos”, acredita Blower. 

    Para escapar da decadência, acrescenta ele, não dá para tapar os olhos para a passagem do tempo. “Ninguém gosta de falta de conservação”, afirma. “E é perfeitamente possível manter a tradição e, ao mesmo tempo, apostar em processos de gestão modernos”. Muitos estabelecimentos antigos, por sinal, não resistiram à pandemia porque nunca haviam aderido ao delivery, por exemplo, e administravam as contas de maneira amadora.    

    Um dos bares mais tradicionais da Zona Sul carioca, o Jobi, no Leblon, está na ativa desde 1956. Em 1960, ele foi adquirido pelo português Adelino Rocha, já falecido. Hoje quem toca o negócio é um filho dele, Manuel Rocha, que está com 73 anos, e a única filha deste, a advogada Eliana Rocha. Primas dela, a dentista Elina Rocha e a médica Carla Rocha, também são sócias do bar — são filhas de um irmão de Manuel, Narciso Rocha, que também já se foi.

    O bar tem o mesmo nome do predinho do qual ele faz parte. O construtor da edificação foi um certo João Bittencourt, o que dá margem para uma possível explicação para o nome adotado. Os atuais proprietários, no entanto, nunca conseguiram confirmar essa história. Até os anos 1980, o Jobi não passava de um pé-sujo que focava em PFs para a turma que trabalhava na região. A vida noturna no Leblon, afinal, ainda não existia. Foi só quando Cazuza e sua turma adotaram o Jobi e outros empreendimentos vizinhos que o panorama começou a mudar.  

    Parte da fama do Jobi se deve ao diminuto salão, de 40 metros quadrados, notadamente desproporcional ao volume intenso de frequentadores. “Os clientes costumam pedir mesa para duas pessoas e daqui a pouco estão em dez, sentados em cadeiras que vamos tirando sabe-se lá de onde”, resume Manuel. Diariamente, o endereço atende de 200 a 400 pessoas. Dado o sucesso do Jobi, ele ganhou uma filial em 2023. É o Jobá, a poucos metros. “Viramos nossos concorrentes”, brinca Eliana Rocha. 

    Bar Mureta do Urca
    Tiago Anastacio
    Bar Mureta do Urca
    Tiago Anastacio

      Se o Jobi está com 68 anos, o bar Urca chegou aos 85. Este foi fundado por Armando Gomes, já falecido. Neto dele, Rodrigo Gomes, é quem comanda o negócio hoje em dia. É mais um endereço conhecido pelas limitações físicas. O restaurante do mesmo empreendimento, é verdade, dispõe de um bom espaço e de ar-condicionado — fica no primeiro andar. Mas 90% da clientela dá preferência ao bar, no térreo, que só tem nove metros de largura. 

      Isso porque o estabelecimento está voltado para a mureta mais famosa do Rio de Janeiro. Em frente à Baía de Guanabara, faz as vezes de banco para a imensa maioria dos frequentadores do bar Urca. Incluído no Patrimônio Histórico, Cultural e Turístico do estado do Rio de Janeiro, o endereço também é conhecido pela empada de camarão e pelo bolinho de bacalhau, entre outros petiscos do tipo.

      Slide 1 |

      Pizxzaria Castel›es
      Rua Jairo Gois, 126
      Sao Paulo SP – Mauro Holanda

      Pizxzaria Castel›es
      Rua Jairo Gois,Pizxzaria Castel›es
      Rua Jairo Gois, 126
      Sao Paulo SP – Mauro Holanda

        Tida como a pizzaria mais antiga de São Paulo, a Castelões completou um século em 2024. No mesmo imóvel desde a inauguração — fica no Brás —, ela foi fundada por Ettore Siniscalchi e Vicente Donato. Hoje está nas mãos do neto deste último, Fábio Donato, que faz questão de dizer que a trajetória do restaurante não foi só um mar de rosas. “A decadência nos assombrou diversas vezes”, reconhece ele, conhecido por falar tudo que lhe dá na telha. 

        Durante a gestão dele, que começou com a morte de seu pai, João Donato Neto, em 2014, o período tido como o mais desafiador foi o da pandemia. A Castelões, afinal, nunca havia aderido ao delivery e só se rendeu às entregas, que perduram até hoje, a muito contragosto. “Me desculpe, mas se você gosta realmente de pizza precisa ir até a pizzaria”, brada o atual mandachuva. “A qualidade de uma pizza entregue não é a mesma”.  

        Ele trabalha no restaurante desde 1988 e hoje se encarrega, sozinho, do preparo de todas as massas. “Não tenho mais saco para ficar explicando para ninguém como deve ser feito”, resmunga ele, que aceita ajuda só para tirar a massa do equipamento utilizado para a mistura dos ingredientes. Diariamente, Donato gasta de 6 a 10 horas com essa tarefa. “É um trabalho prazeroso, está longe de ser um fardo”, afirma. Nos dias de maior movimento, a Castelões vende cerca de 250 pizzas. 

        Ele credita a longa trajetória às melhorias no ambiente — uma grande reforma deve sair do papel em breve — e à busca constante para elevar o padrão das pizzas. “O restaurante sempre precisa ser agradável para os olhos e a qualidade da comida nunca pode diminuir”, receita. “Manter a tradição não significa fazer sempre a mesma coisa. É preciso mudar de tempos em tempos. Só assim para tudo permanecer como antes”. 

        Mostrar mais

        Prazeres da Mesa

        Lançada em 2003, a proposta da revista é saciar o apetite de todos os leitores que gostam de cozinhar, viajar e conhecer os segredos dos bons vinhos e de outras bebidas antecipando tendências e mostrando as novidades desse delicioso universo.

        Artigos relacionados

        Botão Voltar ao topo