Dois vinhos e uma homenagem
(*) POR CARLOS CABRAL
O fundador do Grupo Pão de Açúcar, Valentin dos Santos Diniz, que nos deixou em março deste ano, era um apreciador moderado de vinhos. Tinha o vinho inserido em sua cultura diária, por herança da educação recebida em sua terra natal, a pequena aldeia de Pomares do Jarmelo, na Beira Alta, quase fronteira com a Espanha. Veio para o Brasil com 16 anos, sozinho, em busca de futuro melhor e, no dia 25 de novembro de 1929, avistou pela primeira vez o grande maciço de pedra na Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar.
Aquela imagem ficou guardada em sua memória para sempre, tanto que o cartão-postal carioca emprestou o nome ao império que construiu. Tudo começou em 7 de setembro de 1948, quando fundou a Doceira Pão de Açúcar, na Brigadeiro Luis Antonio, nos Jardins, em São Paulo, que viria a ser o maior negócio de varejo do Brasil. Esse educadíssimo senhor logo se tornou o orgulho da comunidade lusitana no país. Era um exemplo a ser seguido, e todos os seus patrícios o respeitavam, tratavam-no carinhosamente por “comendador”, referência ao reconhecimento do governo de Portugal que lhe outorgou a Cruz de Cristo, no grau de comendador.
Com 13 anos de idade, tive o privilégio de inaugurar a Loja 2 do Pão de Açúcar, na Rua Maria Antonia, no centro da capital paulista, como garoto que comprava os vasilhames na entrada da loja. Foi meu primeiro emprego: corria o mês de agosto de 1963. “Seu” Santos passava por lá todos os dias, e conversava com os funcionários. Quando retornei ao grupo, em 1997, como encarregado pela promoção e divulgação dos vinhos, adotei uma prática de sempre levar a seu conhecimento como estavam se portando as vendas de vinhos na companhia. “Seu” Santos me recebia e eu lhe entregava uma planilha de vendas do mês anterior. Assim foi por muitos anos. Certa vez, um diretor da José Maria da Fonseca Vinhos, de Portugal, quis conhecê-lo.
Marcamos o encontro com sua secretária. Após uma conversa animada sobre o que o grupo tinha feito em Portugal, o convidado lhe ofereceu quatro meia-garrafas de Moscatel de Setubal, respectivamente, com 10, 20, 30 e 40 anos de idade. Lembrando o código de ética da empresa, que não permite o recebimento de presentes, ele se dirigiu a mim, na frente do convidado, e disse:
— Senhor Cabral, posso aceitar este presente e levá-lo para minha casa? Não quero ser indelicado com nossa visita.
Como neste ano de 2008 o Grupo Pão de Açúcar completa 60 anos, o gerente de compras de bebidas, Rodrigo Adura, apresentou a idéia de homenagear o fundador, lançando dois vinhos com seu nome. Homenagem aprovada, tive o privilégio de provar, ao lado de diversos colegas de trabalho, várias amostras. Em conjunto, decidimos por um espumante e um tinto, que receberiam o nome Valentin. O primeiro é um produto especial elaborado pela Vinícola Miolo, do Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves. Feita com as uvas Pinot Noir e Chardonnay, é um brut elegante, com um longo estágio nas leveduras, e um perlage fino. Engarrafado em um frasco de design diferente, recebeu um rótulo claro, no qual se destaca o perfil do rosto de “seu” Santos.
Já o tinto é um Malbec especial, elaborado pela maior vinícola da Argentina, a Peñaflor, em que o competente enólogo Daniel Pi buscou essas uvas em vinhedos centenários, de baixa produção de cachos, mas com enorme con- centração de fruta. Esse vinho recebe da crítica especializada a pontuação de cinco estrelas. Uma gratificante e sincera homenagem a esse senhor que deixou muitas saudades e já está fazendo falta a todos que o cercavam. Sua presença física exigia dos que o admiravam a reflexão de que, quando fazemos o que amamos, nos tornamos imbatíveis.
(*) Carlos Cabral estuda vinhos há 38 anos. É consultor e um apaixonado pelo tema