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Memórias genuínas

“Éramos olharmo-nos intacta retina, a cajuína cristalina em Teresina”, ícone da cidade de Teresina, a cajuína já foi até tema de música de Caetano Veloso e permeia as memórias de infância dessa que vos escreve

Uma das coisas que lembro com carinho, de minha infância, é o período de férias escolares. Era quando visitava meus avós maternos, em Teresina, Piauí. Minha irmã e eu contávamos os dias para retirar a poeira das bicicletas. Elas ficavam guardadas em um galpão, e sair pedalando por um enorme terraço coletivo, que fazia fronteira com uma chácara, com um muro alto demais para os padrões infantis. Era uma alegria inexplicável sair da rotina e usufruir da liberdade que aquele lugar nos  proporcionava.

Apesar de meus avós morarem em apartamento, em uma área urbana, a poucos metros tínhamos acesso a alguns elementos que permeiam o cotidiano rural, como o galo, que insistia em cantar de madrugada, os bem-te-vis, que apareciam nos fins de tarde e as diversas árvores frutíferas que emolduravam aquele espaço. A maioria abrigava ingredientes típicos da região. Insistíamos em subir no pé de manga-rosa, ignorando nosso medo de altura. Brincávamos ao redor dos pés de cajá, acerola e amora, mas o mais imponente de todos era o suntuoso cajueiro, com folhas demarcadas, que nos deixava claro a distância que estávamos de Brasília.

Ariano agitado, meu avô, José de Almeida Costa, o homem de branco famoso pelas piadas contadas na Praça Rio Branco, mas que para nós era o vô Zé Almeida, sempre descia do apartamento para nos acompanhar em uma verdadeira expedição frutífera. Seu 1,85 de altura me pareciam mais de 2 metros. Ele nos colocava em seus ombros e retirava os cajus conosco, sem se preocupar com as manchas na roupa de cambraia de linho branco. Impacientemente, eu retirava o fruto de forma brusca, sentindo-me uma gigante.

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No calor de Teresina

Quentes, com o calor de Teresina, os cajus exalavam um forte perfume que nos passava a sensação de acolhimento e proteção, comuns nas casas dos avós. Ao tocá-los, sentíamos a textura lisa da casca e, posteriormente, encontrávamos resquícios dela, não coletados pela peneira da minha avó, durante o preparo do suco.

Em nosso quarto, repleto de fotos com várias fases de nossa infância, o frigobar era recheado com bebidas comuns ao paladar infantil, mas a “cajuína da Sarinha” não podia faltar. Quando meu avô chegava das ruas do centro com a bebida, o barulho das garrafas de vidro se chocando invadia a casa, para a alegria da neta “boa de garfo”.

Como não gostava de beber água, a cajuína era a bebida que me refrescava após as tardes de pedaladas com minha irmã Raquel, que fazia jus ao seu papel de primogênita, comandando as brincadeiras com as crianças do prédio ou, então, em nossa pequena gangue de primos, em que o caçula era sempre “café com leite”.  Era então a hora do lanche, anunciada por vovó, da varanda. A cajuína estava lá, com tom dourado em sua garrafa de vidro, emoldurada pelo mosaico de gotículas de água, resultado da refrigeração. No primeiro gole a sensação era de uma doçura equilibrada e refrescância, após o calor e a exaustão provocados pelas brincadeiras.

Lembranças

A lembrança da cajuína em minha memória afetiva não se limita à casa de meu avô. a bebida era oferecida para acompanhar os pratos típicos, servidos para as visitas por nossas tias-avós, como bolo de goma, bolo frito, beiju, creme de galinha, vatapá ou até o caldo dos famintos – preparado com carne de sol, ovos e vários temperos, com destaque para a aromática pimenta-de-cheiro.

Infelizmente, não me lembro da primeira vez que provei a cajuína, mas, para mim, a bebida sempre existiu em minha vida e para sempre estará ligada à presença de meus avós, na ponte aérea Brasília-Teresina, quando a saudade e as lágrimas das netas apegadas ao avô eram certeiras.

Por Sara Almeida Campos

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