Mulheres e taças
POR RENATO MACHADO (*)
As mulheres gostam mais de vinhos simples? Ou femininos? Ou suaves? Ninguém sabe precisar o que sejam tais vinhos. Mas a maioria dos leitores da revista inglesa Decanter rejeita a idéia, por ser paternalista. Consideram o argumento ridículo. Ao contrário: as cartas comprovam que as mulheres querem justamente conhecer os vinhos de que os homens gostam. Óbvio.
Uma vez convidei para almoçar uma colega jornalista, combativa e brilhante, com quem muito aprendi no dia-a-dia da redação. Ofereci ao almoço (bem modesto, aliás) um vinho “feminino”. Os belos olhos azuis me fuzilaram antes que eu abrisse a garrafa de Malbec argentino – na época, um vinho que eu considerava apenas agradável.
E ali estavam, plasmados na minha expressão apologética, os três equívocos que eu havia cometido. Primeiro, o de oferecer o vinho com aquele horroroso adjetivo discriminatório. Segundo, o de achar que a característica de suavidade está de alguma forma associada à qualidade, o que indica também um preconceito – o de que os iniciantes precisam de um padrão simples, ou reduzido. Terceiro, por ter achado que o Malbec argentino era agradável.
As mulheres têm um papel fundamental no mundo do vinho justamente por serem por tradição estranhas a ele, quase uma exceção. Quando elas entravam, era para fazer história. Como especialistas, herdeiras, vinificadoras ou personagens. É fácil de entender. O fascínio dos homens pelo vinho muitas vezes é a extensão de um mundo de colecionador, uma memória de infância, um brinquedo a mais. A esse mundo as mulheres se adaptam mal. Têm sentimentos mais importantes a exprimir. Um menino que coleciona carrinhos ou rótulos não é exatamente um encanto. Pode ser apenas um nerd.
Mas essa é uma imagem do passado. Um preconceito negado por artistas do gosto como Alix de Montille (Meursault, Borgonha), Paula Gloder (Montalcino, Toscana), Elisabetta Foradori (Trentino, Itália), autoras de vinhos precisos e apolíneos, não necessariamente dionisíacos, outro clichê que acompanha a imagem feminina.
O caso do Château Pichon Longueville Comtesse de Lalande ilustra bem esse tipo de engano. A propriedade é resultado de uma partilha familiar dos Longueville que acabou ficando com a condessa de Lalande, cujo retrato ornamenta o elaborado castelo no “commune” de Pauillac, em Bordeaux. O vinho sempre foi tido como “feminino”.
Sobretudo depois que durante mais de duas décadas foi dirigido com zelo por madame May-Eliane de Lencquesaing – embora o jovem Gildas d’Ollone, seu sobrinho, cuidasse da parte técnica. A propriedade passou à Casa Roederer no ano passado. Mas vejam o que dele diz o Guia Hachette, referindo-se à safra de 2004: “Macio e carnudo, recheado de taninos sólidos, promete ser um grande Pauillac que só atingirá o apogeu depois de dez anos”. O que se pode dizer de todos os grandes clássicos do Médoc, femininos ou não.
Na crítica e apreciação de vinhos, Serena Suthcliffe (autora de The Wines of Burgundy), Jancis Robinson (The World Atlas of Wine e também colunista de Prazeres da Mesa) e Michele Shah (The Wines of Italy) demonstram que a mudança de imagem já aconteceu lá fora.
Mais um pouco e já estará aqui.
(*) Renato Machado é jornalista da Rede Globo e grande conhecedor de vinhos, especialmente os do Velho Mundo