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“QUEREM DEGUSTAR CASTA OU TERROIR?”

Foi com esta pergunta que Jean-Michel Deiss – grande produtor da Alsácia – recebeu um grupo de brasileiros para conhecer mais sobre seus vinhos

Uma das maiores surpresas que tive nesta minha vida privilegiada de colunista de vinhos foi o contato com Jean-Michel Deiss (grazie Jorge Lucki), quando ele disse: “Querem degustar casta ou terroir?” Deu-me um branco por alguns segundos. Nunca ninguém havia feito aquela pergunta. Depois que escolhemos terroir, ele nos serviu um Altenberg (nome do vinhedo) 2005, de Bergheim.

Que vinho! Nós o adoramos e ele descreveu as características, classificando-o como poderoso e barroco, de impressionante frescura, frutas explosivas no nariz, com citrino, fruta tropical, mel e baunilha e uma Retsina no final. Então, perguntamos: “E que castas contém? Jean-Michel não teve dúvidas, e respondeu: “Não interessa, vocês estão bebendo o terroir de Altenberg”…

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Sensacional. Foi uma brincadeira, mas séria, depois nos contou que tem lá todas as castas tradicionais da Alsace, inclusive a Chasselas Rosé. Outro dia, um blogueiro publicou uma entrevista com o mesmo Jean-Michel Deiss, na qual ele conta sua saga pelo terroir. Fala que, um dia, ao vinificar as diferentes castas do vinhedo de Egelgarten, percebeu que a Riesling, a Muscat, a Pinot Beurot, a Pinot Noir e a Chasselas de Egelgarten não tinham tanta diferença entre si – o forte em todas elas não era a tipicidade, mas o traço de Egelgarten.

Desistiu então de vinificar as castas em separado e fez o vinho, como no passado, com as castas misturadas. Ele vende terroir, e isso é único.

A maioria das pessoas que avaliam vinhos, sejam profissionais, sejam amadores, em minha opinião está fazendo errado. Essa maioria parte da nota 100, que seria o conceito de perfeito e vai tirando pontos, com base no que está estipulado nos cursos e em grande parte da literatura do vinho, como sendo defeito. Acho que deve ser exatamente o contrário. Devemos partir de zero e ir acrescentando notas ao achar o que nos dá prazer no vinho.

E digo mais, os alicerces do julgamento estão equivocados para a maioria dos vinhos avaliados, por um motivo muito simples: terroir. Não há conhecimento completo de terroir na grande maioria dos lugares onde se cultiva uva e se produz vinho.

Aliás, o maior número de produtores não é um Jean-Michel Deiss, lamentavelmente. Não é produtor que busca terroir de verdade. Fala de terroir, mas usa leveduras selecionadas e corrige os vinhos com taninos, ácido tartárico e toda sorte de recursos da tecnologia moderna de vinificação.

Esses produtores buscam um vinho perfeito, sem defeitos, mas a natureza não é assim.

Penso que o que está estipulado é limitado e pretensioso. Estipula-se que o xixi de gato é traço de tipicidade da Sauvignon Blanc e acha-se legal isso, nobre até. Mas qualquer outro aroma que apareça em algum terroir desconhecido faz o vinho ser colocado de lado e julgado como defeituoso. O gosto pessoal é uma coisa, o defeito é outra. Se o xixi de gato não fosse reconhecido pela literatura como tipicidade de terroir em Sauvignon Blanc de Bordeaux, certamente seria taxado como defeito hoje por esses avaliadores.

Temos no Brasil alguns vitivinicultores procurando isso. O Eduardo Zenker, da Vinhas da Loucura, lá da Linha São Rafael, em Garibaldi, Rio Grande do Sul, por exemplo, tem em todos os vinhos um traço de bacon no aroma. Mas isso apenas no primeiro ano. Depois, isso desaparece. O De Lucca, em Farroupilha, todos os anos tem um traço de picles de pepino no Moscato Branco. E eles não alteram suas uvas com leveduras de fora não, são indígenas. Nem manipulam absolutamente nada na vinificação. Seus vinhos são sinceros, autênticos.

Por que o xixi de gato é nobre para Bordeaux e o picles de pepino é defeito para Farroupilha? Ou o bacon é defeito para a Linha São Rafael, em Garibaldi? O que sabemos desses terroirs para decretarmos esses aromas como errados? Não estaríamos sendo arrogantes? Ou estamos com medo de sair da zona de conforto do que está estabelecido como certo? Qual o problema em dizer: “Preciso aprender mais sobre esse terroir”.

Lembrando o respeitado Émile Peynaud, “degustar é criar intimidade com o vinho”.

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