Tempo de transgredir
(*) POR ALEX ATALA
Chefs são chefs e não confeiteiros. Na verdade, todo chef um dia depara com essa dificuldade: encarar o desafio de fazer uma boa sobremesa para poder seguir em frente e se provar um profissional completo. Não sou uma exceção. Na verdade, se pudesse fazer um pedido a Deus, seria o de obter no universo dos doces a mesma fluidez que tenho no mundo dos salgados. É bom lembrar que a cada dia essa barreira vem se rompendo. E também que no século XVI não havia diferenciação entre os salgados e os doces, ambos conviviam harmoniosamente na mesma cozinha.
Beber, no clássico, sempre foi – e será – artifício em uma cozinha moderna. A receita que trago este mês não é exatamente um clássico. Ela tem uma carga talvez mais forte do que um prato clássico, toca na nossa memória gustativa. Ou melhor, na memória gustativa da família da minha mulher. Chama-se torta da dona Palmyra. Dona Palmyra é a avó da Márcia, bisavó do Tomás e da Joana, meus filhos caçulas.
Quando a conheci, dona Palmyra logo veio me dizer, cheia de orgulho, que já havia vencido um concurso de receitas. Achei divertido e pedi que ela preparasse o prato premiado. Poucos dias depois, lá estava na minha frente uma torta de castanha-do-pará, bem no estilo da vovó. Experimentei a torta e fiquei fascinado com o sabor da massa e com a textura leve, úmida. Não titubeei. Pedi a receita, resolvido a fazer minha versão da torta.
Preciso confessar que do ponto de partida (o dia em que conheci a receita) até o dia que a incluí no menu-degustação do D.O.M. (com o nome de bolinho de dona Palmyra) passaram-se seis ou sete anos. Prova de que não tenho a mesma facilidade no mundo dos doces que tenho no dos salgados. Com a torta pronta, comecei a fazer minhas associações. Castanha-do-pará combina com chocolate. Venho recebendo há algum tempo chocolate de excelente qualidade, de notas complexas, menos doce, com um amargor elegante. Aquele chocolate não é coisa de criança e, pensando nos sabores que não eram de criança, cheguei até o ponto que apresento hoje. Combinei o chocolate com curry. E também com um sorvete de uísque que fiz anos atrás. Com esse trio (torta da dona Palmyra, calda de chocolate e curry), a sobremesa foi parar no meu livro novo Escoffianas Brasileiras, cuja justificativa do título só conto para quem comprar a obra a partir do mês que vem.
Da conclusão do livro para cá, a receita seguiu evoluindo. Comendo e pensando naqueles sabores, que incorporamos com o desenvolvimento do paladar (ou seja: amargos, alcoólicos, contraste de sal e doce), me pareceu lógico que faltava uma perninha a essa receita. Finalizamos com quatro ou cinco pedras de flor de sal. Isso dá um tom a mais à potência do curry, à persistência do chocolate, à parte aromática do uísque e um contraste de salgado justo, bem medido. Com esse toque, elevei a torta a um patamar acima. Mas ela ainda não estava completa.
O toque final mora numa briga contra a covardia. O curry já garante o picante, mas resolvi acentuar essa sensação. Uma de nossas diversões no D.O.M. é fazer conserva de pimenta. Ultimamente, temos feito uma com 10% de cachaça e o restante de azeite de oliva e pimentas malaguetas verdes. O resultado é um óleo verde, denso, extremamente picante, aromático e saboroso. Em uma única gota dessa conserva, há muita potência de sabor. Às voltas com minha sobremesa, um dia resolvi dar um pinguinho desse óleo verde na calda de chocolate.
Acho que cheguei à crise da meia idade. Não tenho mais a audácia para transgredir, o ímpeto punk rock dos meus 20 anos. Ganhei os contornos de um senhor contido. Transgredir nem sempre é a missão mais fácil, mas com o tempo pode ser uma boa saída. Sempre me lembro de Murphy nessas horas. Segundo ele, todo grande problema tem uma saída fácil e objetiva: a errada.
Nessa coluna volto a me encontrar com aquele garoto de cabelo espetado dos anos 1980. Dessa vez ele vai pular na frente, sugerir que as pessoas experimentem (de vez em quando, o senhor contido também pede ajuda). Engraçados esses caminhos da vida que se confundem com os sabores: clássico, moderno, familiar, contrastes de doce e salgado. E o quanto pode ser pertinente e fascinante uma gota de pimenta em uma calda de chocolate.
Faço essa receita em homenagem à minha querida Palmyrinha, a quem agradeço. Espero que um dia possa mostrar aos pequenos Tomás e Joana como é divertido ser travesso.
• Bolinho da dona Palmyra com sorvete de uísque e curry
Pimenta em conserva
1 litro de azeite extra-virgem
100 ml de cachaça
200 g de pimenta malagueta verde
1 folha de louro
1 ramo de alecrim
1 ramo de tomilho
1 Retire os cabinhos das pimentas e lave-as bem; junte todos os ingredientes em uma garrafa de vidro, tampe e coloque em banho- maria a 80 °C, por 8 minutos.
2 Armazene em um pote de conserva, em temperatura ambiente, até que as pimentas se concentrem no fundo do recipiente, quando estarão prontas para consumo; esse processo pode durar até 30 dias.
(*) Alex Atala é chef e proprietário dos restaurantes D.O.M. e Dalva e Dito, em São Paulo