Da cozinha familiar à modernidade
Como ingredientes típicos e a releitura de receitas clássicas levaram uma capital a ser premiada na gastronomia nacional
A culinária mineira é nacionalmente conhecida pela memória afetiva a que remete. Pratos originais ou releituras de grandes clássicos trazem à tona a potência gastronômica do estado – que, em outubro de 2019, viu a capital, Belo Horizonte, ganhar da Unesco o título de Cidade Criativa da Gastronomia. E um dos fatores que contribuem para esse marco é a cozinha familiar, caso da realizada pelo chef Ivo Faria, do Restaurante Vecchio Sogno, e de sua filha, Naiara Faria, do Restaurante La Palma.

Juntos, pai e filha mesclaram afeto e modernidade, e trouxeram para o Mesa Minas uma receita com enfoque na gastronomia ítalo-mineira. “Quando se iniciou a construção de Belo Horizonte, fomos buscar os técnicos e profissionais na Itália. Por isso, temos aqui tanta influência dessa cozinha”, afirmou Ivo Faria.
A escolha da receita
Segundo Naiara, Minas é o estado que mais consome carne suína no país, e por isso a escolha do prato: envelope de costelinha com galete de umbigo de bananeira e laminado de chuchu. Ingredientes como palmito laminado, maria gondó e a língua de porco também foram usados para ressaltar o sabor da receita. Para o preparo da língua, Ivo dá uma dica valiosa: “Na hora de cozinhá-la, você não deve ficar ‘espetando’ para ver se chegou ao ponto certo. Basta pegar a ponta e experimentar. Quando essa parte está cozida, o restante também estará”.
A combinação de costelinha, língua de porco e maria gondó é adicionada à frigideira com um leve fio de azeite, e deve ser grelhada de todos os lados, além de ser finalizada ao forno. O chuchu também é preparado com azeite, mas é apenas salteado. Já o umbigo de bananeira, por ser um ingrediente mais complexo, precisa ser fervido em vinagre e sal e, logo em seguida, lavado em água corrente. Em relação à galette, é preciso creme de leite, farinha, ovo, queijo canastra e temperos clássicos, como sal e pimenta-do-reino.
A finalização do prato é feita com o molho da própria carne, e é considerado pelos chefs a parte mais importante da receita. Segundo Ivo, a ideia foi levar para o evento um preparo que usasse ingredientes típicos de Minas Gerais, que são pouco valorizados. “Espero que tenhamos passado para o público presente um pouco da paixão que temos pela arte e pela gastronomia. Como também tínhamos muitos alunos e pessoas que estão iniciando a carreira agora, na plateia, queremos que eles se sintam inspirados a continuar.” Naiara completou a fala do pai. “Queremos mostrar também que os ingredientes não precisam ser usados apenas de uma forma. Abuse da criatividade e do conhecimento e crie outras receitas.”
Um olhar na despensa

Para todo profissional chega o momento de rever o trabalho e pensar em novas possibilidades. Foi o que aconteceu com o chef Fred Trindade. Responsável pelo sucesso do Restaurante Trindade, ele trocou recentemente Belo Horizonte por Tiradentes, assumindo o Restaurante Tragaluz, no qual une a reconfortante cozinha mineira e um toque contemporâneo e de vanguarda. Um dos responsáveis pelo avanço da gastronomia de Minas Gerais para além da comida caseira, o chef alia tradição e técnicas mais apuradas na preparação de seus pratos.
Fred conseguiu se posicionar no mercado e encontrar um viés que vá além da culinária. “A gastronomia mineira passou por diversas gerações. A minha, que é considerada a terceira, vem com uma nova concepção sobre o cozinhar, porque além de trabalhar em restaurantes, nós pudemos viajar para estagiar fora do país. Percebemos, então, que temos também a função de educar por meio de uma cozinha sustentável.”
No Mesa Minas
Com foco na culinária mineira do norte do estado, o chef levou, em sua aula no Mesa Minas, diversos ingredientes típicos da região: carne de sereno, pequi, tutano, alho assado e andu – um feijão típico da região do cerrado. Combinando técnicas e sabores, as pessoas presentes na aula puderam conhecer um pouco mais da raiz mineira, e como ela pode ser reestruturada em releituras. Fred diz que seu prato mostra a importância de olhar para a despensa e aproveitar tudo o que se tem em casa, de forma criativa e saborosa.
O pequi foi usado como óleo, para compor a glace, feita com carne de boi. Utilizando farinha de mandioca, o chef acrescentou o andu, e montou uma farofa como acompanhamento. Para finalizar, é adicionado o tutano ao alho assado, para trazer mais corpo ao prato e criar assim uma explosão de sabores.
Fred não para por aí. Diz ter muitos planos para o Tragaluz, e que Minas Gerais é o berço da culinária criativa do país. Por isso, segundo ele, o prêmio ofertado pela Unesco está no lugar certo. “Quando iniciei meu trabalho aqui, vi nascer diversos projetos gastronômicos. Com a proporção que está tomando, nós não sabemos aonde vai chegar. O crescimento é visível”, afirma.
Tradição x Criatividade
À frente do restaurante Xapuri, que conta com mais de 30 anos de história, o chef Flavio Trombino se vê sempre na corda bamba da tradição x criatividade.
“Eu trabalho muito com tradições, mas ela não pode barrar a criatividade, não pode estar acima da evolução. É um tema delicado, os puristas querem me trucidar às vezes, porque você mexe com coisas das quais as pessoas têm muito orgulho”, afirma o chef. Segundo ele, a tradição deve servir como fonte de inspiração para o que virá.
Uma receita para o evento
Durante sua aula no Mesa Minas, Trombino quis fazer uma homenagem ao restaurante Maria das Tranças, que há 69 anos faz parte da história mineira. “É uma casa que já está em sua terceira geração e a fundadora, dona Maria Clara, faz a mesma receita do frango ao molho pardo desde o começo. Ela criava as aves em seu quintal e as vendia, para incrementar o orçamento da família. Quando inaugurou o restaurante, em 1950, as pessoas podiam escolher o frango que seria preparado. Ela criou toda a sua família com a renda de um único prato, que é um ícone e representa muito bem a tradição”, afirma.
Mas, apesar de exaltar dona Maria Clara e suas tradições, o chef também não perde a oportunidade de inovar. Lembrou de uma aula a que assistiu do chef Thomas Troisgros na qual usava um molho de açaí no boeuf bourguignon. Então, decidiu que seu molho também seria com açaí e não com sangue, como é a receita tradicional. “Ao criar a receita, com outras possibilidades, acho que enalteço e valorizo a tradicional, além de não deixar que morra. O açaí dá uma textura interessante e fica visualmente muito bonito. Fica mais fácil para quem for fazer em casa também. Isso porque o sangue não pode ser comercializado e é difícil encontrar locais que vendam a ave viva, para que o processo seja realizado desde o começo”, diz.
Uma nova finalização
Trombino afirma que a base de todos os frangos do cardápio é igual e que muda apenas a finalização. “Chamamos de frango preguento, que é um frango bem reduzido, bem glaceado e que solta bastante colágeno. Nosso fogão a lenha funciona direto, há 32 anos, pois à noite deixamos os caldos e ele está sempre em funcionamento.”
Para a montagem do prato, o tradicional angu mineiro, mas, que, ao contrário da maioria dos restaurantes nos quais é servido puro, aqui ganha tempero, serve de base para o prato. Sobre ele, o frango e o caviar de quiabo, com flores comestíveis.“Meu desafio é conseguir reescrever a história do restaurante, sem perder nossa essência e nossas raízes.”