É BRASA
Por Ursula Alonso Manso, do Rio de Janeiro
Fotos Sergio Coimbra e Tomás Rangel
Aos 39 anos, Felipe Bronze dedicou mais da metade da vida à cozinha. Antes mesmo de se formar no Culinary Institute of America (CIA), dos Estados Unidos, já trabalhava nos caterings que a família mantinha no Rio de Janeiro. Com dificuldade de acreditar na comida dos outros, como ele mesmo diz, lançou-se desde cedo ao trabalho autoral. Deu a cara a tapa. Arrebatou mais de 15 prêmios ao longo da carreira. E sentiu também, algumas vezes, sua gastronomia incompreendida. Perdeu. Ganhou. Assim, construiu a identidade única que hoje apresenta no Oro e no Pipo. Além disso, vem entretendo o público e inspirando novos cozinheiros com três programas de TV simultaneamente no ar a partir deste mês – o novíssimo Perto do Fogo e os já consagrados The Taste Brasil e Que Seja Doce.
Sua inspiração para ingressar na profissão teve nome e sobrenome: Claude Troisgros, hoje parceiro no The Taste, que escreveu a carta de recomendação ao diretor do CIA para que Bronze pudesse estudar lá. Na escola, onde se formou também o filho de Claude, Thomas, Bronze participou de uma competição e ganhou como prêmio uma viagem à Noruega, com estágio no Bagatelle, na época o único três estrelas Michelin no país. Mas um jantar no Oro, também em Oslo – que Bronze considerou o restaurante mais incrível do mundo na ocasião e anos depois tomou o nome emprestado para batizar sua casa no Rio –, mudou a trajetória do chef. Enquanto em Nova York as ervilhas chegavam aos restaurantes devidamente higienizadas, no Oro chegavam sujas de terra. Bronze pediu para estagiar no restaurante e elogiou, para o chef, o prato de vieiras com ervilhas. Recebeu 40 quilos do vegetal para lavar, branquear e retirar a película. No Bagatelle, seu destino inicial, nunca estagiou.
Após os atentados de 11 de setembro de 2001 aos Estados Unidos, Bronze voltou ao Rio, sua cidade natal. No final daquele ano, assinou o cardápio comemorativo de 15 anos do Sushi Leblon. Foi convidado pelas sócias da casa para comandar o Zuka, de onde saiu para montar o Z Contemporâneo, em Ipanema. “Foi o projeto mais ousado e divertido até hoje no Rio, embora muita gente não estivesse preparada para as ideias de Felipe”, afirma Damien Montecer, chef do Emiliano Rio, que dividiu panelas com Bronze no Z. O tempura de ovo de codorna, atualmente servido no Pipo, já fazia parte do cardápio do Z, que ainda trazia yakisoba de carne de sol, rolinhos crocantes recheados de moqueca e guioza de rabada. “Fiz melancia na brasa. Não podia imaginar que mais de dez anos depois a Bela Gil faria churrasco de melancia. Que bom que ela virou mãe dessa ‘atrocidade’, que passou despercebida em 2005 e ninguém me esculhambou”, afirma Bronze, sorrindo.
Por desentendimentos entre Bronze e os dois sócios, o Z Contemporâneo baixou as portas, o que só o tempo permitiu ao chef enxergar como algo positivo. Mas Bronze seguiu em Ipanema, desta vez no endereço onde em breve será reinaugurada a boate Hippo. “Era o Mix by Bronze, tinha um ‘by Bronze’ ainda por cima, eu não gostaria de ter trabalhado nesse lugar, mas trabalhei”, diz o chef, contando ter recebido um convite dos empresários Alexandre Accioly e Ricardo Amaral para assumir o que era uma brasserie e, em seguida, transformá-la em um restaurante com sua cara, o que não chegou a acontecer. “Foi uma experiência terrível, mútua, acho que eles me contrataram por razões erradas, porque eu era famoso, e eu fui trabalhar com eles porque estava precisando de dinheiro, era um supersalário, uma grana preta.”

Essa fama, da qual Bronze gozava até então, não foi levada em conta na época em que assumiu a gastronomia do Grupo Marina, de 2006 a 2010. Para as equipes dos dois hotéis no Leblon, no Rio, um em Búzios e outro em Itaipava, Bronze era “o garoto”. Meses antes ele recebia 30 currículos por mês pedindo estágio no Zuka e ainda mais que isso no Z Contemporâneo. No Marina, os 120 funcionários não tinham a menor ideia de quem ele era.
Amado por muitos, Bronze chegou até aqui odiado por muitos também. Afiada, sua língua já lhe trouxe alguns desafetos no meio gastronômico. Mas nem por isso ele deixa de falar o que pensa. Foi só a chef Roberta Sudbrack declarar-se desacreditada da alta gastronomia que Bronze quis dar seu ponto de vista. No artigo que publicou recentemente na imprensa, ele conclui dizendo: “Se hoje Roberta Sudbrack prefere um modelo mais simples e inclusivo, que o faça com todo o orgulho do mundo e vá ser feliz. Tenho certeza de que terá sempre excelente comida e a admiração de muitos cozinheiros. Mas respeitar a forma de tantos profissionais apaixonados por seu ofício pode ser um caminho mais equilibrado e justo a seguir. Há espaço para todos”.
Alta gastronomia, na opinião do chef, corresponde aos melhores profissionais trabalhando com os melhores produtos – e isso não vai morrer nunca. Depois do Grupo Marina, Bronze foi se reconectar à alta gastronomia pelas mãos do casal Marluce Dias, ex-todo-poderosa da Rede Globo, e Eurico Cunha, empresário do ramo dos restaurantes. “A Marluce me lembrou quem eu era, de que eu gostava, o que eu queria fazer”, afirma. Em outubro de 2010, nascia o Oro, que também passou por alguns percalços no começo. Por exigência de Eurico, o restaurante abriu com menu degustação e cardápio à la carte. Da cozinha, Bronze mandava todos os pedidos em porções menores. “Nossas porções eram calculadas para o cliente comer quatro ou cinco delas, mas as pessoas pediam apenas duas.” Ao final, saíam dizendo que o restaurante era bom, mas muito caro para pouca comida. Nada, no entanto, que uma correção de rumo, extinguindo o cardápio à la carte, não tenha resolvido. “O Oro foi uma escola para mim, lá aprendi a entrevistar, contratar, demitir e, o mais importante, a ensinar”, diz Itamar Araújo, chef de pâtisserie do Belmond Copacabana Palace, que também esteve ao lado de Bronze no Z Contemporâneo e no Grupo Marina.
Ainda tendo o casal Marluce e Eurico como investidores, Bronze abriu, em julho de 2013, o Pipo, com o apelido pelo qual é até hoje chamado pela mãe e servindo uma gastronomia mais casual e descomplicada. Em janeiro de 2015, o Pipo encerrou as atividades e logo depois o Oro seguiu o mesmo caminho. Sobre o fim dos dois restaurantes no auge do sucesso, ele afirma ter descontinuado as operações porque não eram suas e não tinha perspectivas de se tornar sócio.

O Oro reabriu em novo ponto em abril de 2016. O Pipo, em novembro do mesmo ano, agora no Fashion Mall. Hoje Bronze diz não ter investidores, apenas dois sócios minoritários, e garante que as contas fecham. “O investimento no Oro foi baixo, não retornou 100%, mas já retornou 80%, o que é muito bom em momento de crise e em qualquer época”, afirma. Para os comensais, o que salta mesmo aos olhos (e ao paladar) é a guinada na cozinha de Bronze. Se antes ele era um entusiasta da gastronomia molecular – e chegou a manter um quadro no Fantástico chamado “O Mago da Cozinha” –, agora maneja como ninguém as brasas. Em todos os pratos do Oro, equipado com uma parrilla, um yakitori japonês e um forno a carvão, pelo menos um ingrediente passa por brasa. “Isso é um desafio na hora da sobremesa, que não pode ficar com gosto de carburador”, diz Henrique Rossanelli, que participou da primeira temporada de The Taste no time do chef André Mifano e foi contratado por Bronze como responsável pelas confeitarias do Oro e do Pipo.
A chamada gastronomia molecular ainda aparece aqui e ali, mas de forma tão sutil que mal dá para perceber. Avesso aos rótulos, Bronze diz que usa a técnica que for necessária para obter o melhor resultado. “Os sorvetes, por exemplo, são feitos com nitrogênio líquido porque é a melhor maneira de fazê-los. Não temos o sorvete pronto, congelado, ele é feito na hora.” Sem desmerecer sobremesas e principais, o sétimo menu dessa segunda fase do Oro, em cartaz em fevereiro, brilha pelos snacks – ostra com ceviche de coco-verde e granité de água de coco; crocante de baroa com picles de baroa, iogurte e mel; crocante de arroz negro, vinagrete de mexilhão e gel de dashi; gazpacho de tomate amarelo com manga, quiabo e bottarga; tempura de abóbora na emulsão de manteiga de garrafa e pó de café; e mochi de rabada e shoyu, entre outros.
No descontraído Pipo, todos os pratos são feitos para ser compartilhados. “A maneira de comer mudou”, afirma Bronze. Um minissanduíche no pão de milho com ostras crocantes, maionese de ostras e picles de cebola-roxa, o ostrix, figura entre os mais elogiados, mas a versão vegetariana, que atende pelo nome de “berinjoia”, com brioche de vapor, berinjela no miso, moyashi na brasa e folha, também tem seus fãs. Outras boas pedidas são guiozas de pato confit, e a costela de boi cozida por 18 horas, com aipim, vinagrete, farofinha de ovo caipira, tartare de banana e couve rasgada. Para os chocólatras, (quase) tudo chocolate, com bolo, calda, mousse, brigadeiro e avelãs.
Na hora de criar, Bronze pode se inspirar de três maneiras. A primeira, quando quer transformar um conceito em comida, como já fez muitas vezes buscando materializar ícones cariocas, a exemplo da própria praia. A segunda, com base em um produto. “Deixo meu filho Antonio na escola e vou à feira orgânica três vezes por semana. Foi assim que começamos a usar a azedinha, que pode aparecer em uma emulsão, em um sorvete ou em pó.” A terceira, a partir de uma associação de sabores, na linha do isso pode cair bem com aquilo. Pratos em homenagem a outros chefs, ele afirma ter feito apenas uma vez, na primeira fase do Oro, com o bosque. “O Alinea, em Chicago, foi uma experiência muito forte para mim, talvez tenha sido o grande jantar da minha vida, para mim o Grant Achatz é o gênio moderno da gastronomia, não tem ninguém como ele, talvez apenas o Albert Adrià.” Qualquer que seja o caminho para um novo prato, a sommelière do Oro e mulher de Bronze, Cecília Aldaz, é envolvida desde a execução da criação. Assim, ajuda a construir os sabores e entende melhor como harmonizá-los depois.
Àqueles que lhe perguntam se o tempo dedicado à TV não atrapalha a rotina de trabalho nos restaurantes, Bronze tem a resposta pronta. “Igual ao que Paul Bocuse respondeu em 1970 ao ser questionado sobre quem cozinhava no restaurante dele enquanto ele viajava: as mesmas pessoas que cozinham quando eu estou no restaurante.” Isso porque fazer TV é coisa séria para o chef. “Sim, os programas culinários glamourizam a profissão, mas eu acho que essa é uma profissão tão sofrida que merece ser glamourizada”, diz. “Minha crítica aos programas de gastronomia é quando eles satanizam a profissão, sadicamente é divertido assistir a um Hell’s Kitchen e ver Gordon Ramsay gritando com as pessoas, mas é muito triste imaginar que tratar as pessoas mal daquele jeito seja a realidade na profissão.” Orgulhoso de fazer parte do The Taste, Bronze garante que o programa mostra a verdade. “O Japa (Henrique Ide, que após a segunda temporada foi contratado para trabalhar no Oro) não chegou nem à final e, para mim, ele era, talvez, o mais talentoso de todos.”
Também é real a disputa entre os próprios chefs durante o programa – nesta terceira temporada, Bronze, Claude e Helena Rizzo, substituindo André Mifano. “A gente se envolve emocionalmente, discute, compete dentro e fora das gravações, o Felipe é, talvez, o mais competitivo de todos, sempre na corrida para vencer”, afirma Claude. Além de seus mentorados Jessica Isaac e Vitor Oliveira ganharem, respectivamente, a primeira e a segunda temporadas do The Taste, Bronze ainda levou a melhor na última disputa com Claude. Como conta o participante da segunda temporada, Gabriel Coelho, hoje chef no Pipo. “Queria ter escolhido o Felipe como mentor, mas via o Claude na minha frente, com toda a história dele na gastronomia, e fui para o time do Claude. O Felipe me sondou para trabalho logo que as gravações acabaram. Eu vim conhecer restaurantes no Rio e fui ao Olympe, onde fui convidado para ser chef de eventos do Grupo Troisgros. Balancei, mas já tinha marcado de conversar com o Felipe. E o que ele me disse foi o que me ajudou a decidir: ‘Para fazer besteira, faz diferente desta vez, se você tivesse me escolhido como mentor, tinha ganhado o programa’.” Para Gabriel Coelho, Henrique Ide e Henrique Rossanelli, tanto quanto a oportunidade de trabalhar ao lado de um dos mentores do The Taste, chamam atenção os planos de expansão do chef. “A única maneira que tenho de reter pessoal é crescer o negócio para ele ficar do tamanho do talento dos caras. Vou abrir outro Pipo. Provavelmente em São Paulo”, afirma Bronze. “Ou em Miami, Nova York, onde der para abrir.”

Vapt-vupt
Prazeres da Mesa – Você já subiu aos céus e desceu ao inferno. Quais os erros do início da carreira?
Felipe Bronze – Presunção. É terrível acreditar que você é especial. Eu me deixei intoxicar pelo sucesso muito cedo e achei que o que eu fazia era uma coisa maravilhosa. O melhor que me aconteceu foi ter caído. Não teria chegado ao mesmo nível de maturidade se tivesse dado certo de primeira.
Faria menos críticas a outros chefs e casas?
Acho que fui muito inocente, não fiz 95% das críticas que me atribuem. Mas, nos 5% que fiz, fui muito infeliz. Fui muito arrogante por achar que minha opinião se sobrepunha aos fatos.
A profissão deslumbra?
Não, é uma profissão difícil, sacrificante, que escolhe você. Ninguém, em sã consciência, escolhe essa profissão.
Como vê a gastronomia hoje?
Já foi tudo inventado, a era dos pratos clássicos acabou. O que fica, agora, são as ideias, estamos na época dos cozinheiros. Pense no Massimo Bottura, o número 1 do mundo, e na sobremesa “Ops, derrubei a torta”. Isso não é um prato, é uma ideia. Tivemos essa conversa recentemente nos bastidores do The Taste. O Claude (Troisgros) falou nos seus clássicos – a codorna recheada, o cherne com banana –, e eu perguntei há quanto tempo ele não faz um prato na vida.
Que cozinheiros admira?
Comecei a cozinhar por causa do Claude. Tenho uma admiração tremenda pelo Alex (Atala). Pelo Jefferson Rueda, com A Casa do Porco, a coisa mais genial que já fizeram em restaurante no mundo. Pelo Rafa (Costa e Silva), um cara quase obcecado pela perfeição. E convivi agora com a Helena (Rizzo) no The Taste, que é uma mulher brilhante.
Cozinhar para alguém em especial o deixou emocionado?
Sim, para pessoas que se entregam à experiência, que vêm comer e saem felizes. Uma pessoa que eu vi o olho brilhando enquanto comia foi o Massimo Bottura. Ele teve uma reação quase infantil de alegria no Oro, estava genuinamente feliz, ficou com os olhos cheios d’água. Foi bonito de ver.
Cozinha para seu filho?
Ah, meu filho é um chato pra comer. Ele é muito pequenininho ainda, vai fazer 3 anos, mas não é curioso com a comida, não põe qualquer coisa na boca. Ama abóbora, mas só gosta da abóbora kabocha. Se fizer outra abóbora para ele, ele come, percebe que é outra e não gosta.
Onde gosta de comer?
Gosto de comer sushi no Ten Kai e no Minimok, e pizza no Bráz. Gosto de comer no Lasai. Gosto de comer nos CTs e no Olympe. Acho o Paolo Lavezzini, do Fasano Al Mare, o melhor chef que a casa já teve. Gosto do Mee e do Satyricon, para comer peixe.
