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Harmonização depende da receita

POR JORGE LUCKI (*)

Vinhos e comidas não seguem exatamente os mesmos caminhos na hora da escolha. Os vinhos devem ser escolhidos tal como são, enquanto os pratos podem ser modificados e adaptados. Ainda que isto seja verdade, o que nos levaria a sempre escolher o vinho primeiro e depois adequar a comida, o que acontece na realidade é o inverso.

Até aí nada demais. Uma das grandes virtudes do vinho, e que nenhuma outra bebida tem, é a extrema diversidade, o que permite, em qualquer ocasião, encontrar um rótulo adequado para o prato. De qualquer forma, não basta ter apenas “uma noção” do que será servido. É preciso ir a fundo, analisar suas características, ingredientes e forma de preparo.

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A questão me surgiu recentemente, quando fui convidado a participar do programa Menu Confiança, comandado pelo talentoso Claude Troisgros no canal GNT. O formato da série prevê um prato preparado pelo chef francês que será acompanhado por dois vinhos proposto pelo convocado do dia. No meu caso era “carré de porco com caju”. Preparado como? Grelhado, assado, ensopado ao molho de vinho tinto? Caju, a fruta? Castanha-de-caju? Acompanhamento? A criatividade de Troisgros não permitia imaginar algo trivial.

Esperei ele voltar de viagem para saber detalhes da receita. No fundo, era carré assado lentamente, em que, na hora de servir, a carne é coberta com molho saído do cozimento da fruta do caju:

* O carré fica marinando durante 12 horas numa mistura de água fervida com limão, cebolinha, alho, bacon e azeite. No dia seguinte, o da refeição, ele fica assando durante 4 a 5 horas no forno a 150 graus, regado constantemente pela marinada.
* O caju (a fruta) é colocado para cozinhar em fogo baixo durante 1h30, em uma panela na qual previamente foi fervida a água com pedaços de limão, açúcar, canela-em-pau, sal e pimenta-de-cheiro. Na hora de servir, a fruta cozida é cortada ao meio e caramelizada.

Com isso, o prato se distingue por ser uma carne branca – é delicada e menos fibrosa que as carnes vermelhas -, bem macia e temperada, em que se somam os sabores marcantes do caju e seu molho. Os vinhos, portanto, deveriam seguir uma linha mais leve, com bom frescor e sensação frutada – para fazer frente ao molho agridoce -, e elegante. São características que tanto brancos quanto tintos podem ter. Segui esse caminho, propondo o alsaciano Trimbach Pinot Gris Réserve Personelle 2001 (Zahil, R$215,00), e o riojano Allende Calvário 2002 (Península, R$493,00).

O primeiro é um branco elaborado por um dos melhores produtores da Alsácia, Trimbach, a partir da Pinot Gris, casta infelizmente menos conhecida, mas que tem real valor e vocação à mesa. Ela tem corpo e textura mais macia que a nobre Riesling, atributo fundamental para se compor com a carne, mantendo bom índice de acidez com toque de fruta madura. Foi, a princípio, o vinho que mais agradou ao chef Claude Troisgros.

Outros vinhos que poderiam também fazer bonito seriam chardonnays de clima frio, que têm a maciez que marca essa uva, porém sem deixar faltar o tão importante frescor, caso, entre outros, dos borgonhas e alguns rótulos chilenos da região de Casablanca e Leyda/San Antonio. Brancos portugueses também não destoariam, entre eles os procedentes do Alentejo, elaborados com Antão Vaz, e Dão, da casta Encruzado, só para citar alguns.

O segundo vinho, o Calvário 2002, tem um nome à primeira vista não muito sugestivo, mas que faz sentido: seu vinhedo margeia o caminho utilizado pelos peregrinos durante a Semana Santa para chegar à igreja situada no alto da montanha. É um Rioja moderno – não segue aquele padrão antigo da conhecida região espanhola, em que os vinhos permaneciam longo período em barris de carvalho, oxidando e perdendo a fruta – e elegante. A garrafa, aliás, dá a pista. Ao contrário da maioria dos tintos da região, que utilizam garrafa bordalesa, a do Calvário é borgonhesa, em alusão, justamente, ao refinamento que tanto caracteriza os vinhos da Borgonha.

O vinho tem conjunto harmônico com o frescor e o frutado da casta Tempranillo, associado a um corpo na medida com taninos finos (alguns anos de garrafa, caso deste 2002, ajudam), fez parceria perfeita com o carré. Sobretudo com a companhia do caju, uma fruta que não perde totalmente uma (certa) sensação de aspereza mesmo cozida, como proposto na receita – quando Troisgros se deu conta desse detalhe, aceitou de bom grado as duas opções, aquele branco e este tinto. Além do Calvário, outros Riojas podem servir de opção mais acessível, assim como alguns portugueses da região de Portalegre (zona norte do Alentejo, que tem mais acidez), Bairrada e Dão.

Sugestões

Brancos
Leyda Lot 5 Chardonnay; Leyda, Chile. Grand Cru, R$ 98,00
Macon Villages 2005, Verget; Borgonha. World Wine, R$ 85,00
Montagny 1er Cru 2002, Leroy; Borgonha. Zahil, R$ 258,00
Couteiro-Mor Antão Vaz 2006; Alentejo. Adega Alentejana, R$ 45,80
Quinta dos Roques Encruzado 2004; Dão, Portugal. Decanter, R$ 89,20
Quinta do Chocapalha Reserva branco 2005; Estremadura, Portugal. Vinci, US$ 45,75

Tintos
Allende 2002, Fica Allende; Rioja. Península, R$ 139,00
Viña Alberdi Reserva 2000; Rioja. Zahil, R$ 98,00
Predicador 2006, Benjamin Romeo; Rioja. Grand Cru, R$ 165,00
Altas Quintas Crescendo 2005; Portalegre, Alentejo. Decanter, R$ 68,80
Luis Pato Vinhas Velhas 2005; Bairrada. Mistral, US$ 69,00
Dão Quinta dos Carvalhais Colheita 2004, Sogrape; Dão. Zahil, R$ 93,00
Vila Santa 2005, João Portugal Ramos, Alentejo; Casa Flora, R$ 62,35

(*) Jorge Lucki é um dos maiores conhecedores de vinho do país e colunista do jornal Valor Econômico

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