Muito além dos cangurus
Por Mariella Lazaretti
Fotos Georges Schnyder
Quando o convite para um tour gastronômico chegou do governo da Austrália, a proposta era ampla e vagamente angustiante: tínhamos de escolher o roteiro, que poderia ser por todo o território, em quanto tempo fosse necessário. Um mês depois ainda passávamos horas olhando mapas. Decidimos, enfim, ater-nos a três dos seis estados, precisamente nas cidades de Sydney, Melbourne e Adelaide – e até hoje me pergunto o que poderíamos ter conhecido na capital dos outros três – Brisbane, Perth e Darwin. Enfim, a vida é feita de escolhas.
O que você vai ler a seguir é o giro de dez dias de um casal pela Austrália, comendo em ótimos restaurantes, bebendo excelentes vinhos e visitando um dos países mais surpreendentes e bonitos do planeta. Vivemos ainda uma grande ocasião: o último jantar pop up do Noma, o restaurante de René Redzepi, que fechava sua temporada de seis meses de funcionamento itinerante, em Sydney.
Fizemos uma grande cobertura digital de tudo o que vimos ali, postado em tempo real. A Austrália é um cartão-postal com vida e o segundo país na lista de melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Ao final da viagem, a única questão que nos afligia era como fazer para retornar todo verão àquele paraíso.
Delírios à parte, vamos ao que interessa: Austrália, em três tempos e muitos pratos, vinhos, risadas e paisagens. Considere que tudo o que estiver escrito aqui pode ser visto em mais de uma centena de posts na página de Prazeres da Mesa do Instagram e do Facebook e buscando por #mesaaustralia, em fotos e vídeos.
Sydney, a joia do Pacífico Sul
Ela é linda, brejeira, descolada… Sydney, localizada no estado de New South Wales, tem aquele astral praiano que tanto encanta os brasileiros. O litoral é muito bem preservado, ruas limpinhas, gente sorridente, desarmadas (de armas de fogo mesmo). As pessoas vão trabalhar de bicicleta. Andam de shortinho e chinelo de dedo no calçadão chique do Porto de Sydney. Ali, o que impera é a vibe da natureza, dos coalas, da aventura e do mar.
Todo o litoral central de Sydney – de Bondi (sul) a Freshwater (norte) – abriga uma população jovem e negócios descolados. Mas Bondi é um ponto cintilante à beira-mar, o Soho praiano. Lojas com visual alternativo, restaurantes com pegada natureba e uma informalidade sedutora obrigam qualquer forasteiro a passar ao menos um dia na área. Uma vez no local, vale fazer a caminhada pela Costal Walk até a Praia de Coogee, por 3,6 quilômetros, e se esticar na areia branca em frente à galeria da cidade. Uma boa pedida é usar a piscina do clube Iceberg encravada no meio do mar e, depois, comer um hambúrguer no Bills Bondi.
No cartão-postal de Sydney é que sentimos o poder econômico e ao mesmo tempo filosófico do país. O que foi declarado pelo capitão Arthur Phillip, comandante da fragata inglesa a aportar naquelas bandas, em 1788, como “The Finest Harbour in the World” é deveras chique. Trata-se de um rasgo generoso terra adentro, pelo qual avança o Pacífico Sul e sobre o qual foram construídas obras notáveis e modernas na década de 1950. A icônica Sydney Opera House, de autoria do arquiteto dinamarquês Jørn Utzon, construída de 1959 a 1973, é uma visão inebriante ao pôr do sol e também sob as luzes da noite. Por isso, jantar no Bennelong, que fica dentro do teatro, são favas contadas (e cozidas a baixa temperatura). O restaurante informal de Peter Gilmore, um dos chefs mais aclamados da Austrália, proporciona uma vista privilegiada do porto, e uma comida gostosa e moderninha por preço razoável.
Agora, se você quiser realmente abafar com seu par, marque um jantar no restaurante “sério” de Gilmore. O Quay (pronuncia-se qui), que fica no topo do edifício Circular Quay, no terminal de passageiros do porto, oferece uma vista de quase 360 graus, de frente para a Sydney Harbour Bridge e para o teatro. O menu leve e surpreendente é coroado pela “sobremesa assinatura” do chef – o snow egg, uma esferificação gelada de ovos nevados, com creme de baunilha no centro. Essa criação virou coqueluche no país e recebe interpretações em várias casas. O Sepia é uma delas. O restaurante, comandado pelo chef Martin Benn, havia acabado de ser eleito Restaurante do Ano. O local é lindo, moderno e trendy. Benn navega na reedição da gastronomia que fez sucesso no início dos anos 2000, com esferificações e gelo-seco. Mesmo datado, é muito bom. Já o restaurante Bridge Room, cujo chef Ross Lusted acabara de ser eleito Chef do Ano, traz a leveza de propostas mais arejadas, apropriando-se de produtos da costa como caranguejos, cogumelos-selvagens, algas grelhadas e pontuando a refeição com wagyu e pato.
Aliás, estando na Austrália, é importante encarar um fato inescapável: você vai comer canguru, wagyu, abalone e pato. Enxugue as lágrimas pelos cangurus; eles são quase um problema nacional de superpopulação. Pode chorar pelos abalones, moluscos anciãos que são arrancados do fundo do mar e chegam à mesa com a história do oceano na carne. Em casos extremos, como no jantar do Noma, que estava em Sydney havia seis meses fazendo um pop up de sua versão dinamarquesa, o abalone de lábios negros vinha vivo, levantando-se da concha (assista ao vídeo). Tive a sensação clara de que ele tentava se suicidar antes de ser devorado em seus 80 anos de vida, e gerou em mim o mesmo remorso de quando me serviram tatu assado, tempos atrás. Já os patos são uma obsessão gastronômica na Austrália, eles estão em todos os menus seguindo uma ou duas receitas clássicas.
Outra coisa que prospera com muito charme em Sydney são as cafeterias. Você pode caminhar pela área do The Rocks, com galerias de arte e bares, que vai encontrar vários. Mas, para saber o que ver em outros bairros mais distantes, tivemos o serviço de Culture Scouts – escoteiros da cultura. Ótima pedida. Emily, nossa guia, é alegre e muito antenada. Guiou-nos pelo bairro descolado de Surry Hills, onde conhecemos a Cafeteria Gratia, que existe basicamente para arrecadar fundos para três instituições: na hora de passar o cartão, você escolhe para qual delas vai direcionar o pagamento. Anexo a ela funciona o restaurante FoLoNoMo (For love no money), que completa a proposta usando produtos sazonais e de pequenos produtores, sem fins lucrativos para a casa. Em toda a Austrália vicejam as iniciativas de coletividade, inclusão e transparência. Feiras pop up acontecem o tempo todo. Nelas, você provará produtos artesanais de altíssima qualidade – queijos, manteigas, sorvetes, iogurtes divinos.
O Nomad é o restaurante trendy daquelas bandas. Projeto com cozinha aberta, vinhos em barricas e produtos expostos em enorme galpão, traz a proposta de mesas coletivas e de compartilhamento que começa nas animadas filas de espera. Ainda no mesmo bairro, também estivemos na excêntrica “fast-food” Butter, que oferece comida de caixinha, mas totalmente “fora da caixinha”: vende no mesmo espaço modelos de tênis ultramodernex e um menu só de frangos acompanhados de champanhe ao som de hip-hop. Resumindo: tudo o que os sócios mais gostavam (o.k., é duro, mas podia ser pior, tipo salmão e música sertaneja). Outra proposta estilo purista é a brewerie Young Henrys, no bairro de Newtown. Numa garajona bagunçada, os três big barbudos “Wombat”, Matt Kuchar e Graeme Kent produzem Natural Lager, Real Ale, Hop Ale, Clowdy Cider (de maçã) e a Newtowner. São oferecidas em garrafões de vidro e em um ambiente desconfortável, como em uma oficina mecânica.
O Young Henrys faz sucesso sem servir um petisco sequer; é tipo “got nothing but beer”. Nos fins de semana, um food truck estaciona no quintal para a clientela não tombar de estômago vazio. Saímos dessa cidade, querendo ficar… “Sydney is awsome” e merece uma viagem só para ela.
Melbourne: grande cidade, grandes segredos
Melbourne, localizada no estado de Victoria, é grande e aparentemente impessoal como São Paulo. E, como aqui, guarda grandes lances que precisam de uma mão amiga que os descortine. Tivemos a sorte de contar com a presença de um representante do Turismo da Austrália, Tony Poletto, diligente, falante e bom garfo. Além dele, pudemos experimentar também o serviço da empresa Melbourne Food Experiences, comandada por Allan Campion, ex-chef e promotor de festivais, e seu guia agitador Cameron Smith, apresentador de rádio do programa Eat it. Percorremos com eles a cidade a pé, entrando em lojas de produtos gourmet. Foi assim que conhecemos o Spring Street Cheese, literalmente escondido em um porão sob uma loja gourmet: um tesouro de queijos com um sentinela entre os tamboretes de queijos; o “afinador ” – profissional que trabalha a maturação das peças e orienta o consumidor.
Em restaurantes, tivemos experiências enriquecedoras e inesquecíveis. O restaurante Cumulus foi um deles. Local de gente de arte e foodies, oferece comida moderna e afetiva sob o comando do chef Andrew McConnell. O pernil de cordeiro, tenro e úmido por dentro, pururuca por fora, formalizou-se como o melhor cordeiro assado já comido em anos. Em outro estilo, mas inesquecível pela proposta completa, está o Café Grounds of Alexandria. Uma ideia genial, envolvente e gregária. Trata-se de um galpão rústico e efervescente, onde produtos de fazenda (de verdade) estão ao alcance dos olhos e das mãos. Ali, cozinha carinhosa e gente alegre se misturam, enquanto garçons universitários saem dos balcões com drinques criativos, hambúrgueres colossais e pratos com muita salada ao lado (assista ao vídeo). O cardápio de cafés merece estudo pausado – são coados na hora. Os pães australianos são maravilhosos, feitos com levain e trigo moído na hora, um luxo. O Grounds se estende ainda para o outro lado da rua por um pequeno bosque com uma estufa, no qual quiosques espalhados servem porco assado, pizzas e atrações gastronômicas sazonais, que podem ser comidas no meio dos jardins. Imperdível. Outro restaurante de Melbourne, o Estelle by Scott Pickett, um dos melhores do país, tem serviço perfeito, comida boa, mas não surpreendente – até a chegada do pato. De todos os patos australianos, este é o melhor.
Já o restaurante Vue du Monde, no 55o andar do edifício Rialto, merece uma visita nem que seja para discutir depois se o lugar é cafona ou cult. Revitalizado pelo chef Shannon Bennett, tem comida divertida como um churrasco de mesa com linguiça de marrom (espécie de lagostim), vieiras e porco e pão para o comensal preparar o sanduba. O lugar é escuro, a decoração remete ao glamour exagerado dos anos 1970, há uma adega espetacular exposta com 3.000 garrafas e a vista é fantástica. Bennett é ousado. Seu mais recente projeto, Burnham Beeches, consiste em revitalizar uma antiga mansão construída nos anos 1930, em Sherbrooke Road, a 45 minutos de Melbourne. Ao sair para visitar o Yarra Valley, onde estão vinícolas e produtores de queijo, vale tomar o café da manhã em seu Piggery Café, com ingredientes próprios saídos da horta e do galinheiro.
Na estrada, mais adiante, outra parada divertida é no Yarra Valley Dairy, onde queijos e derivados de leite de vaca e cabra chegam de fazendeiros de toda a Austrália e podem ser provados com uma coleção de vinhos de Yarra Valley – ali, há dezenas de vinícolas encantadoras. O programa é bom e rápido: sentar-se diante de uma janela para um belo vale, em cujo beiral apoiamos pratos de queijos frescos e curados e um vinho branco geladinho.
O mais legal no estilo australiano de ser é o espírito desbravador que habita até o mais urbano de seus concidadãos. O estilo mãos sujas de terra e chapéu surrado pode ter saído de cena, mas o senso comum de que a natureza deve ser aliada e não subjugada e explorada é conquista social de séculos. No entanto, essa alma outsider não está no cardápio dos restaurantes. A influência do alimento aborígine é ainda um tabu. Foi preciso que o irlandês Jock Zonfrillo se mudasse para Adelaide para criar o restaurante Orana (leia o quadro) para que o menu mais ousado, criativo e autóctone fosse posto à prova. Ou que René Redzepi chegasse com sua equipe do Noma para que ingredientes da terra e do mar nunca encontrados em certa escala começassem a coexistir com o canguru e o pato.
Os produtos colonizados são “farm to table”. Passear por vinícolas, provar seus vinhos e comer um menu degustação é programão em Yarra. Na vinícola Oakridge, restaurante encravado em uma vinícola de Yarra Valley, o chef Matt Stone serve vegetais, temperos, pães e frutos orgânicos que ele mesmo produz. Na Levantine Hill, um menu especialmente notável é assinado pelo chef Teage Ezard.
Dormimos no campo, no Château Yering Historic House – uma mansão datada de 1854, situada em 250 acres de terra produtora de vinhos. Levemente austera, mas aconchegante. Jantamos no Meletos, pizzaria e restaurante no meio de um descampado, com poucas luzes ao redor.
Adelaide. Pequena e cumpridora
Chegamos a Adelaide por avião. É uma cidade bem pequena, dessas de reinos encantados, onde todo mundo se conhece e parece feliz. Por que seriam tristes, me pergunto? O noticiário nacional da noite, as notícias inacreditavelmente pueris. Além disso, uma vez em Adelaide, pode-se percorrer o Vale de Barossa, conhecer seus vinhos e algumas iniciativas inspiradoras. A 40 minutos de carro, chegamos a Penfolds Barossa, uma das marcas mais emblemáticas de vinhos australianos, onde é possível fazer o próprio vinho usando as uvas Shiraz, Grenache e Mataro, que compõem o vinho BIN.
Enquanto isso, no festivo Artisans of Barossa, funciona uma cooperativa composta de seis vinhateiros que vendem suas produções de butique. Bom passeio que termina com a compra de vinhos incomuns e em um almoço caseiro e barato. Na Seppeltsfield Wines, a mais antiga vinícola em operação do Vale de Barossa, a experiência vai além do crível, pois ali se vende a safra de um “vinho do Porto” do ano de seu nascimento. O Para Liqueur Port é produzido há 100 anos, todos os anos. Embora seja curioso poder sentir na boca o sabor das uvas no vinho que as pessoas tomaram no ano de seu nascimento, a visita a esse lugar vale pelo lindo palacete, pelos jardins impecáveis e pela adega de barricas separadas por safras.
Assim foi nossa viagem. Uma experiência inesquecível. Agora, revendo as imagens para escrever esta tardia reportagem, fico com uma que é simbólica. Em uma manhã, desci do quarto para andar nos parreirais do Château Yearing, no Yarra Valley. Era um dia limpo, fresco e o silêncio matinal só era quebrado pelo som das pedras de brita sob minhas pisadas e o dos primeiros passarinhos. Então, vi passar por minha cabeça um vulto enorme, um balão colorido com os passageiros bem visíveis, acenando para mim. Dentro da cesta estavam senhores e senhoras, acima de 75 anos, bronzeados, saudáveis e rindo muito. Destemidos, seguros. Aquilo me tocou. Na Austrália, as regras são feitas para as pessoas serem felizes a vida toda. É assim que o mundo deveria ser. Quando eu crescer, quero ser australiana.
Selvagem e saborosa
Prazeres da Mesa foi testemunhar o milagre do nascimento da nova cozinha australiana. E ela tem sabor e nome: Orana
Se a ideia for conhecer a gastronomia da Austrália e você tiver apenas uma chance, corra para a linda e tranquila Adelaide e reserve uma mesa no Orana, restaurante do chef e pesquisador Jock Zonfrillo, que curiosamente conheci quando estivemos em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, para o ato de fundação do Instituto ATÁ, com Alex Atala. Em 2h30 desfilarão por sua mesa ingredientes e receitas do mar, da terra e do deserto. Um passeio criativo e delicioso pela jovem Austrália dos imigrantes e pela antiga Austrália dos aborígines. Não se preocupe com os nomes estranhos do menu degustação. Aliás, não se preocupe com nada. Solte-se na mesa do pequeno restaurante de 25 lugares e deixe a equipe afinada do Orana apresentar os pratos e harmonizá-los com as bebidas mais variadas possíveis. Vinhos, infusões e sucos ampliam os sentidos da degustação e trazem novos elementos para a história de cada passo a ser contada por cada membro da equipe. Chef, subchef, sommelier se unem aos garçons para explicar as entradinhas em que se destaca o camarão com ameixa, de Davidson, uma pintura de apresentação e sabor, ou a série de pratos principais com personalidade, na qual o badejo Rei George com flor-de-cera-de-Geraldton e agrião ou o canguru no carvão com ameixa de Kakadu, gramíneas e murta-selvagem. Para terminar, troque uma boa conversa com o simpático e inteligente Jock. Você entenderá por que há uma ponte entre Brasil e Austrália que se constrói na cozinha com ingredientes locais. Há na comida do Orana um toque do D.O.M.: um dos pratos é palmito australiano com formiga-australiana. Parece o Brasil, e isso é muito bom.