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Caçarolas à mesa

No mundo perfeito do chef francês Gilles Tournadre, a gastronomia é feita de refeições compartilhadas

Disposta em caçarolas, a comida sai do forno direto para a mesa onde estão seus amigos e parentes mais queridos. A tampa é removida e logo o aroma toma conta do ambiente e aumenta o desejo pela refeição que ali se inicia. Colheres a postos, é hora de cada um se servir da receita, feita de modo descomplicado, com ingredientes frescos e com foco no sabor. Assim seria o mundo ideal da gastronomia para Gilles Tournadre, chef francês detentor de duas estrelas no Guia Michelin.

Fotos RJ Castilho

“O importante na cozinha é a simplicidade. Eu me pergunto muito se os chefs que fazem uma cozinha extremamente elaborada e difícil, quando se sentam à mesa, em casa, comem isso ou fazem algo mais simples. Não tenho uma cozinha comercial e uma de casa, o que eu sirvo no restaurante é a mesma coisa que faço para os amigos comerem quando vão me visitar”, diz o cozinheiro, que hoje soma quatro casas na região de Rouen, na Normandia: o premiado Gill, o Gill Côté Bistro, La Place e Le 37.

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: Delicadeza de sabores e temperos usados apenas para ressaltar a naturalidade dos ingredientes são características da cozinha de Gilles, que mescla oriente com ocidente
Delicadeza de sabores e temperos usados apenas para ressaltar a naturalidade dos ingredientes são características da cozinha de Gilles, que mescla oriente com ocidente

Filho e neto de confeiteiros, Gilles foi levado para a cozinha pela curiosidade e desejo em provar sabores e suas combinações. A partir daí, seguiu a ordem natural da carreira, estagiou em grandes casas para construir toda a base como cozinheiro e, então, poder ser chef. “Foi no Taillevent que aprendi a ser dono de restaurante, a gerenciar com precisão e cuidado, e a ser sempre extremamente profissional”, afirma. Para ele, tão importante quanto cozinhar bem é saber cuidar dos números e da equipe. Daí vêm o sucesso e os prêmios.

De suas panelas saem receitas delicadas, que depois são montadas feito uma pintura, tendo as cores e os espaços de cada ingrediente muito bem pensados em uma louça, de preferência clara. “Acho que as cores do alimento ficam mais bonitas e vivas no fundo branco”, diz, enquanto procura fotos no celular para mostrar que isso não é regra e que ele também cria em louças de outras cores, incluindo as escuras. “Mas gosto quando os pratos são clean, sem tanta extravagância.”

Quanto à construção do gosto, essa depende da sensibilidade do cozinheiro. Por meio do paladar dele serão definidos os temperos, a quantidade de sal e as combinações. “Às vezes, as pessoas vão a um restaurante e dizem que não estava bom, mas isso não quer dizer que algo era ruim, e sim que cada um tem um modo de cozinhar. O que você acha em um restaurante não vai encontrar em outro, e é isso que faz a diferença. É como a cor, o que seria do amarelo se todos gostassem do vermelho?”.

No caso da cozinha de Gilles, os sabores ficam por conta da delicadeza oriental, fruto da paixão pelo Japão e dos diversos aprendizados em suas viagens por lá, mesclada com as técnicas francesas. Seu objetivo diário é apresentar o ingrediente na melhor forma possível. “Uma cozinha boa e saborosa em que o alimento seja mais importante do que o chef”, diz. Ele conta que o respeito pelos produtos e pela sazonalidade é um tema cada vez mais levado a sério na França. Assim como em outras partes do mundo – incluindo o Brasil –, os comensais estão de olho na origem do que vai para sua mesa.

Filosofia que não é novidade para Gilles, que, como ele mesmo diz, teve a sorte de crescer em uma fazenda e olhar com naturalidade para as estações e para o que floresce no quintal. Em tempos nos quais é possível levar um insumo para outro lugar do mundo em, no máximo, dois dias, perdeu-se o hábito (e a vontade) de esperar até a próxima colheita. Outra observação do chef em relação à alimentação atual é o consumo quase diário de carnes. “Há cada vez mais gente no mundo, e isso aumenta a necessidade da produção, que precisa ser feita rapidamente. Quando eu morava na fazenda, antes de abater uma rês, era preciso nascer outras duas, mas esse tempo já não existe mais e o resultado são produtos menos naturais”, diz.

Considerado um dos melhores (se não o melhor) mil-folhas da França, a sobremesa feita por Gilles é montada na hora, o que permite à massa manter sua crocância. Não é à toa que, quando o prato chega à mesa, todos se calam apenas para ouvir a massa folhada sendo quebrada
Considerado um dos melhores (se não o melhor) mil-folhas da França, a sobremesa feita por Gilles é montada na hora, o que permite à massa manter sua crocância. Não é à toa que, quando o prato chega à mesa, todos se calam apenas para ouvir a massa folhada sendo quebrada

Do respeito ao alimento, Gilles parte para o respeito aos colegas de profissão. O cozinheiro conta que, quando encontra em outro restaurante um sabor ou detalhe que poderia ficar bom em um prato dele, usa-os como inspiração. “O fato de ser honesto e contar de onde veio aquela ideia, se era de um ou de outro chef, faz com que se crie uma interessante rede de conhecimento.” O apreço pelo ofício e por aqueles que o rodeiam é traduzido nas duas estrelas Michelin que Gilles cultiva há 27 anos, em meio a outras nomeações.

*Reportagem publicada na edição 168 de Prazeres da Mesa (agosto de 2017)

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Isabel Raia

Na equipe desde 2014, Isabel Raia é editora de Prazeres da Mesa. É formada em jornalismo, pela PUC-SP e pela Universidad de Castilla-La Mancha (na Espanha), e pós-graduada em Cozinha Brasileira, pelo Senac. Isabel tem na gastronomia uma de suas grandes paixões (principalmente se a receita incluir queijo ou chocolate).

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