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O senhor comendador

Uma homenagem ao grande Ático, maître dos maitrês, que nos deixou

Por Gerardo Landulfo

Com esse texto de Gerardo Landulfo — uma homenagem de Geraldo Forbes, publicado anteriormente no Corriere Fasano — nos despedimos desse personagem exemplar.

 

Em uma emocionante homenagem, Geraldo de F. Forbes conta como conheceu seu Ático, 89 anos, há 26 no Grupo Fasano, um maître condecorado com a comenda da Ordem do Trabalho

 

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Eu o conheci em 1961. Tinha entrado na Faculdade São Francisco e, calouro, tivera o cabelo massacrado. Para consertar e rapar tudo, fui ao Salão Ester, o mais reputado de São Paulo, 15 cadeiras, quatro manicures, cafezinho, um luxo, na Rua Sete de Abril. Depois, como consolo da careca, meu irmão mais velho levou-me para almoçar no melhor restaurante da cidade, o Ca’d’Oro, na Rua Basilio da Gama. E aí o encontrei. Um garçom bem diferente dos outros, um rosto crestado de sertanejo, naquela sala comandada por dois maîtres italianos, o Renzo e o Albano, atendendo os senhores mais bem postos da Pauliceia. Eu olhava meio intimidado, moço de 18 anos, para toda aquela classe e elegância, muito embora por toda a adolescência tivesse frequentado o Parque Balneário, em Santos, ainda bem mais requintado que o Ca’d’Oro. Por sorte, o garçom de nossa mesa foi justamente aquele nordestino, com o sotaque forte de sua região e um nome de cidadão grego: Ático. Simpatizei muito com ele, por sua modéstia atenciosa, em meio a certo esnobismo dos outros mais veteranos, quando chamados pelo meninote carequinha. A simpatia foi mútua e dura até hoje, 55 anos depois. Somos amigos e todo 10 de dezembro levo-lhe um bolo para cantar parabéns, junto com a sua cliente favorita, a Karin Rodrigues, que ele conheceu mocinha e deslumbrante. No decorrer de todo esse tempo, fizemos algumas artes juntos. Certa vez, ainda no velho Ca’d’Oro, pedi insistentemente que ele comandasse a cozinha para fazer-nos pastéis de carne, arroz e feijão. O Zé Alcantara Machado ia chegar de longa temporada na Europa e cliente quotidiano iria almoçar lá. E eu queria fazer uma surpresa para o amigo querido. Pois não é que o Ático driblou as severas regras do menu clássico do local e, bem escondido do diretor de sala, produziu não só o pedido, como ainda juntou banana frita para a sobremesa? O problema era que o plano original previa aquela pastelada como uma exceção a não ser mais repetida. Ocorre que os demais fregueses se alvoroçaram e perguntavam: “e eu? Também quero pastel”. Uma confusão que resultou no seguinte: a partir daquela data, em todas as sextas-feiras o menu oferecia pastéis e a inovação foi logo imitada por muitos outros bons restaurantes. Mais adiante, quando o restaurante mudou para o prédio da Rua Augusta, o Ático passou a dispor de um quartinho reservado. Logo passei a levar-lhe uns bordeaux especiais para ele guardar junto com uns cálices de baccarat para tomar martínis e manhattans, como se deve. Muitas belas senhoras e princesas até hoje agradecem esses drinks no capricho. Foram 37 anos que o Ático trabalhou no Ca’d’Oro, de mensageiro a commis (cumim), a gravatinha branca, a gravata preta e, finalmente, comaître e depois maître. Uma carreira incrível, sem faltas de qualquer gênero. E é, para quem não sabe, um trabalho duro. Horas e horas de pé, correndo de cá para lá, ouvindo mil pedidos e buscando atender a todos. O ex-ministro do Trabalho Almir Pazzianotto soube reconhecer isso. Freguês esporádico do restaurante, quando no Ministério, outorgou ao senhor Ático Alves de Souza, nascido em 10 de dezembro de 1926, natural de Monte Santo, sertão da Bahia, a comenda da Ordem do Trabalho. De menino pobre, a ver cangaceiros pelas brenhas do sertão, a retirante arribado na capital em 1949, até comendador e maître convidado do Fasano e do Parigi foi um caminho duro, difícil, mas triunfante. E é sempre um grande prazer, após abraçá-lo, vê-lo às voltas com o bollito, que ele não faz, mas serve há décadas. Depois, um papo dos velhos tempos, ele com a memória ainda afiada e a disposição para trabalhar intacta. Caros leitores e fregueses do Parigi, quando o virem passar entre as mesas, humilde como um commis, na mão, o prato que leva ao cliente, tirem virtualmente o seu chapéu para saudar este fabuloso brasileiro, elegante em seu clássico smoking e soberano em sua dignidade inigualável.

 

Foto por: Tadeu Brunelli

 

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