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O saquê de Saga

A Província de Saga, no Japão, foi o local da grande exploração comercial com a Europa e um tesouro gastronômico escondido aos olhos do Ocidente

Com uma certa preocupação se nosso avião decolaria de Tóquio rumo a Saga, na Ilha de Kyushu, sul do Japão, seguimos para a sala de embarque, observando o painel, com vários voos sendo cancelados por causa da nevasca que caía sobre o país. A temperatura de Tóquio marcava 2 graus negativos, com o céu cinzento e ameaçando o tempo todo cuspir flocos de neve, bem atípico para a época.

Como não teve nenhum aviso, embarcamos, Sergio Kenji Mizoguchi, presidente da Ark Comércio de Produtos Importados Ltda., e eu. Àquela altura, o céu havia mudado de cor instantaneamente, presenteando-nos com a vista do Monte Fuji, a partir da pista 5 do Aeroporto de Haneda. O voo foi bem tranquilo, com alguns pontos de turbulência e a vista branca de boa parte ocidental do Japão. Difícil era saber onde estava o Monte Fuji, que, de acordo com a comissária de bordo, conseguiríamos ver da janela. Para nossa infelicidade, o Boeing 737-800 da ANA sobrevoou exatamente acima do mais famoso vulcão japonês. Ao sentir que o avião estava desacelerando e sensivelmente em descida, começava a visualizar as vastas fazendas de alga nori no Mar de Ariake, que responde por 20% de toda a produção de nori do Japão. E se juntar toda a Ilha de Kyushu, corresponderá a 50% da produção nacional.

A chegada

Fomos recepcionados pela comitiva do Saga Products Promotion Public Corporation, responsável por nossa viagem, e o clima parecia dar tapas na cara com luvas de gelo. Para quem vive em um país tropical, o frio estava simplesmente delicioso. Nosso primeiro destino foi o Palácio do Governo de Saga, onde reunimos para discutir os planos futuros para a importação de saquês da região. Expus como é o mercado de bebidas no Brasil, sua cultura, o que o povo brasileiro busca, aprecia e do que gosta. O prédio do Governo Provincial é a mais alta estrutura e seu restaurante fica no topo, onde se pode observar toda a cidade em 360 graus. Com sua belíssima culinária, fomos recepcionados com um teishoku de requinte, no qual havia os melhores ingredientes da região. O arroz e a alga, entre outros itens bem frescos.

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A capital

A capital que leva o mesmo nome da província é repleta de segredos. Como a sua história, que tomou um rumo acelerado de comércio para o exterior, quando o Lorde Nabeshima resolveu abrir as portas de Saga para o mercado externo. Ele chamou os melhores artesãos para confeccionar as cerâmicas de Arita, tornando a primeira região do Japão a produzir as peças delicadas. Alguns confundem o Arita-yaki com Imari-yaki. Ambas as porcelanas são as mesmas coisas, já que as peças saíam do Porto de Imari. Com o bloqueio do mar chinês e a dificuldade dos holandeses em conseguir as peças chinesas Ming, os mesmos voltaram os olhos para o Japão, uma vez que era o único país que tinha autorização para o comércio.

No começo, os europeus levavam as cerâmicas para a Europa, como se fossem chinesas. Com o tempo as peças Arita ganharam o gosto dos europeus e assim a receita de Saga foi crescendo e o Lorde Nabeshima conseguiu a estabilidade econômica para a sua cidade.

Fomos ao então Palácio de Saga, hoje transformado em museu. Entre as diversas peças, as cerâmicas Arita é o que mais se destacam. Com suas cores vermelho, azul e branco, marcam as clássicas peças de porcelana. Há também as peças azul e branco que lembra bem as porcelanas Ming, já que no início usavam a técnica Some-tsuke.

SAKE TENZAN

Saindo de van da cidade Saga, partimos para Ogui na base da montanha Tenzan, a montanha mais alta da província com seus 960 metros de altura. Ten quer dizer céu. Zan seria a montanha. Como o acesso ao céu, também recebe sua preciosa dádiva para a cidade. A cristalina água que se espalha por toda a cidade e banha a fábrica de saquê. O Rio Gion também é conhecido como Hotarugawa, já que no final do mês de maio até junho, enxames de vaga-lumes riscam a paisagem noturna, atraindo outro enxame de luzes artificiais dos celulares dos turistas de várias regiões do país.

O saquê de saga
Senhor Kensuke Shichida I Fotos: Alexandre Tatsuya Iida

A marca Tenzan tem sua sexta geração de produtores. O sr. Kensuke Shichida é o comandante atual da fábrica e também participa da operação. Ele explica sobre sua estrutura em sua sala dos tempos do Japão, com confortáveis e clássicas poltronas ocidentais de veludo vermelho e janelas que vão do chão ao teto, com o pé-direito de 5 metros. Foi servido chá local e para o petisco que, normalmente, são biscoitos, era o Youkan, uma barra de doce que lembra a textura da goiabada, mas é feita de feijão-azuki, nos sabores original e chá-verde. Amo esse doce e descubro que a região é uma das mais famosas produtoras dessa tradicional guloseima. Estava no lugar certo para me instalar e nunca mais voltar ao Brasil.

História

Bom, a conversa segue e Shichida nos explica que a fábrica de saquê foi criada por acaso, já que a primeira geração produzia rodas d`água para construir o moinho e consequentemente o macarrão de trigo. A ideia inicial era vender a roda, mas o mercado pedia o macarrão. As coisas iam caminhando nos conformes, quando um velho amigo com a corda no pescoço…não conseguindo mais administrar a sua fábrica de saquê pediu para que a comprassem. Sem poder recusar, passou a fabricar saquê, a partir de seus moinhos, agora triturando arroz.

Já a segunda geração, formada em arquitetura, ao invés de reformar e modernizar a fábrica de saquê, resolveu preservar o antigo e modernizar o presente. Essa filosofia continua até hoje. Por isso, ao entrarmos na área de produção, são várias dinastias japonesas nos observando. Desde a Era Taisho, Meiji, Showa e o atual Heisei. Um verdadeiro passeio pela história. Shichida nos conta que, quando criança, brincava de se esconder, mas logo saia de sua toca com medo do escuro e do labirinto de colunas e vigas de madeira, que não usa um prego sequer.

O saquê

Seus saquês são os mais variados e ainda divididos em três marcas. O Tenzan que é comercializado no Japão e no exterior, incluindo o Brasil; o Shichida, com foco no exterior e alguns pontos de Tóquio, e o Iwa no Kura, vendido somente em Saga.

Depois de uma aula de saquê e história, chegou o momento de provar o wagyu de Saga. Igualmente gorduroso como qualquer wagyu, a carne de Saga é muito mais rica em umami, que pode confundir o nosso paladar como doce. Junto com o bovino, provamos o saquê da Tenzan, um Junmai que praticamente limpava a gordura da boca e do esôfago. Delícia era pouco.

Saquê de saga

SAKE MITSUTAKE

Antes de chegarmos à fábrica Mitsutake, demos uma boa caminhada na gelada manhã com garoa de neve nas proximidades do hotel. No entorno do New Otani Saga Hotel, era a antiga propriedade do Castelo de Saga. Com seus impecáveis jardins, era o convite para ficarmos apreciando a vista, antes de congelarmos. Seguimos com nossa fiel van, com a vista dividida em casas e prédios baixos com os arrozais carecas, pois haviam sido colhidos. Nosso destino é chamado de Sakagura Dôri, ou uma Avenida das Adegas de Saquês da cidade Kashima, parte sul de Saga. Uma viagem de 40 minutos de carro, e se chega ao limite da província com Nagasaki.

Fomos recebidos pelos srs. Hiroyuki Mitsutake, o presidente, e seu filho, o diretor Kunihiro Mitsutake. Depois de uma breve reunião para nos conhecermos, o filho nos levou para um tour pela fábrica. A primeira pessoa a que fomos apresentados na ampla área de fermentação dos mostos de saquês, foi o toji (mestre de produção), o sr. Ryuichi Yoshida, um fera no Instagram, que tira várias fotos da produção e é muito fácil de estudá-la.

O saquê

A marca tem várias unidades de produção, inclusive um centro de distribuição, não muito comum nas fábricas de saquês, por ser pequenos. No local também se produz os shochus de vários ingredientes sendo o principal de batata-doce. Um deles é do mesmo tubérculo, só que assado, muito procurado pelas celebridades alcoólatras. Tinha de experimentar esse. Realmente bem mais doce e amigável que o comum, mais ríspido e agressivo no início. Depois que se acostuma, fica mais macio. Os seus saquês também são magníficos, com teor de secura e grau alcoólico bem diversificados. O forte da marca também são os comestíveis. Karês, à base de saquês, baumkuchen de arroz, biscoitos de arroz enrolados com nori são uma perdição.

Seguimos viagem, mas no meio do caminho paramos em um restaurante gigante, que só servia um tipo de prato: o champon. Este ensopado com macarrão fica entre o leve udon e o bem temperado rámen. O champon famoso é da província vizinha, Nagasaki, que usa o caldo de galinha, macarrão, frutos do mar e bastante verduras e legumes. O Imari Champon vem com caldo de porco e a própria carne do animal. No menu dizia acompanhar um prato de gyoza feito na casa. Não tive dúvida. Foi esse mesmo. O caldo que, apesar de ser de porco e rico em colágeno, era bem leve por causa das verduras que sugavam a gordura. O macarrão grosso e cilíndrico escorregava pela garganta. Um alimento completo, bem encorpado, mas que não pesava muito.

O saquê de saga

SAKE KOIMARI

Chegada a hora de visitar a fábrica que tive a honra de conhecer há dois anos. Aqui no Brasil mesmo, na ocasião da visita dessa mesma comitiva que veio à Adega de Sake. A Koimari faz jus à cidade de Imari. Comandada por uma mulher, a Kumiko Maeda, e o marido, Satoru Maeda, que toma a frente de toda a produção.

Sua estrutura é relativamente pequena, mas o suficiente para abastecer o mercado japonês e alguns países, que, para minha surpresa, não é vendida nos Estados Unidos e sim no Brasil. Para quem não sabe, os Estados Unidos são o maior comprador de saquês do mundo. Se juntar todo o volume de importação da bebida do resto do globo não chega nem à metade do consumo dos americanos.

Conversando com o sr. Maeda, ele me diz que deseja ampliar sua estrutura para atender mais pedidos. Porém, a pequena produção também tem seu charme. Quer tomar esse saquê? Terá de correr para conseguir comprar. E em toda a fábrica, é impossível não reparar nos pequenos cuidados.

Há mais mulheres trabalhando tanto na produção quanto na administração. Na loja ao lado da fábrica, uma decoração clássica de Imari, muitas porcelanas, graciosos adereços da cidade, até um barril de sake de 72 litros foi decorado com flores.

Plaza de Arita

Depois da saída da fábrica, fomos visitar o Plaza de Arita, com suas inúmeras lojas de cerâmica e porcelana de Arita. Quando pequenos, nossa mãe falava: ‘Não bota a mão! Anda no meio do corredor!’. Pois é. Eu andava assim e tirei a mochila das costas e deixava quase arrastando no chão. Eram tantas peças caríssimas que tinha medo de chegar perto. Escolher um conjunto de louça, xícaras ou até mesmo peças para tomar saquês era uma tarefa impossível. Apenas duas pessoas no atendimento e um silêncio ensurdecedor, desses de fazer faltar o ar.

No nosso jantar, alguns produtores de saquês vieram nos prestigiar e trouxeram os seus rótulos, com direito a menu degustação de baiacu. Chamado de Rei dos Baiacu, do Tora Fugu, comi tudo. Começando pelos sashimis com fatias mais finas que um carpaccio; passando pelo baiacu cozido no panelão e terminando com um risoto do peixe.

Mas por mais que essa iguaria seja rara e cara, o grande protagonista era a lula muito fresca que só se consegue com encomenda de duas semanas, antes do jantar. O molusco foi cortado em sashimi, quase transparente, textura firme por fora e macia por dentro, quase cremosa, por causa da gordura. E, depois de alguns minutos, quando o pessoal para de comer, o prato é recolhido para imediatamente virar tempura. Daí vem outra explosão de sabor. Sensacional!

E isso sem falar no warasubo, um ancestral do robalo, mas sua aparência lembra mais uma enguia. Por viver exclusivamente nas profundezas do Mar de Ariake, a enguia do demo, não tem olhos, mas tem dentes bem afiados. Aqui, o warasubo é seco e come-se por inteiro, como um petisco. Ou com o peixe de molho temperando com saquê, que amacia a carne.

O saquê de saga

AMABUKI SHUZO

Partimos para nossa última fábrica de saquê, a Amabuki Shuzô, fundada em 1688 na cidade de Miyaki, parte leste de Saga, quase fronteira com a província de Fukuoka. A propriedade lembra o Palácio Imperial, com setores divididos em várias casas. Um belíssimo jardim interno, com fonte de onde corre a água usada na produção da bebida.

O atual presidente, Sotaro Kinoshita, é mestre em harmonizar o tradicional com a tecnologia. Usa e abusa ao máximo da tecnologia para investir tempo em preservar a tradição ou inovar em novos produtos da fábrica. A marca Amabuki também é famosa em usar leveduras de folhas e flores. Desde morango, begônia, infinidade de flores e ervas. O saquê produzido aqui é reconhecido como um dos melhores em vários pontos do Japão, como em vários países, a exemplo dos Estados Unidos, e continentes, como a Europa.

Kurabiraki

Na ocasião da visita, acontecia o Kurabiraki, quando as fábricas de sakes abrem as portas para o público. Assim, é possível conhecer a estrutura da produção da bebida, com tour pelas instalações.

Em diversas partes da produção, constatei que há alguns detalhes que diferem de várias fábricas. Um exemplo foi que muitos setores e cômodos ficam na parte térrea sem a utilização de níveis e escadas. O motivo disso? O atual presidente explica.“Se meu pai que hoje está firme e forte adoecer e precisar viver em um cadeira de rodas, gostaria que ele pudesse ter fácil acesso aos vários setores. Ele é bem teimoso e desejará checar tudo pessoalmente”.

Koji

Dentro da sala do Koji, onde acontece a malteação do arroz, em vez de longas mesas para misturar o fungo com os grãos cozidos, são feitos em cima de caixas com rodas para que mulheres ou idosos possam manipular os pesados sacos de arroz cozido sem ter de carregá-los. O sistema de ventilação do arroz funciona com sensores de temperatura. E, ainda por cima, tudo é avisado em aplicativos de celular para os produtores.

A visita às fábricas foi incrível, cada um com sua forte personalidade e princípios. Um carinho enorme para com os seus saquês, suas tradições e convicções. Não há nada melhor que o ditado que sempre adoto: um gole vale por mil palavras.

O saquê de saga

 

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Alexandre Tatsuya Iida

É embaixador de saquê no Brasil, título mais conhecido como Sake Samurai, outorgado por The Japan Sake Brewers Association Junior Council

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