Produtor versus Consumidor
Admiro quem consegue transformar um pedaço de terra e um tipo de planta em um líquido delicioso, mas é meu dever profissional avaliar criticamente os resultados dessa transformação
Frequentemente me perguntam, a exemplo de alguns de meus colegas escritores de vinhos, se eu gostaria de produzir meu próprio vinho. A resposta é um definitivo não. Sou uma control freak declarada. A ideia de ficar à mercê de algo tão imprevisível e incontrolável como a natureza me deixa de cabelos arrepiados. Eu acabo usando a desculpa que não quero me envolver comercialmente na área sobre o qual escrevo. (Exceto quanto a óculos …). Mas, na verdade, hoje tenho a plena consciência que não sou uma pessoa prática. E que não obtive muito sucesso na minha empreitada como jardineira. Portanto, tudo me leva a crer que eu teria poucas chances de conseguir produzir uma garrafa decente de vinho.
Admiro profundamente qualquer pessoa que consiga transformar um pedaço de terra e um tipo de planta em um líquido delicioso. Mas é meu dever profissional avaliar criticamente os resultados dessa transformação. Ao longo dos anos, tenho me tornado cada vez mais consciente e surpresa com a diferença entre a opinião dos produtores sobre seus vinhos e a minha opinião sobre o vinho deles.
E não estou falando sobre o quão positivamente posso julgar um vinho. Obviamente, a maioria dos produtores vão achar que seus vinhos são ótimos. E confesso que se eu fosse uma produtora de vinhos, ficaria seriamente ofendida se alguém de certo renome desse uma nota baixa ou escrevesse algo negativo sobre eles. Certamente, o fazendeiro e produtor de vinhos do mercado enigmático dos dias de hoje deve ter uma pele calejada, sangue-frio de sobra e, talvez, um saco de pancadas para aliviar a pressão.
Anos de experiência
O que meus 43 anos escrevendo sobre vinhos me ensinaram é que pode existir um grande abismo entre a maneira em que os produtores veem seus vinhos e a maneira em que os degustadores profissionais os percebem.
Alguns escritores de vinhos são famosos pela quantidade de conselhos que gostam de dar aos produtores de vinho. Eles comentam em voz alta sobre os vinhos e dizem aos produtores como eles poderiam melhorar sua técnica. Eu, ao contrário, sou uma degustadora relativamente passiva em um ambiente profissional. Em encontros com os produtores, seja em seus próprios habitats ou durante suas viagens comerciais pelo mundo, tento falar o menos possível, permanecendo no “modo recepção” ao invés do “modo transmissão”. Afinal, quero que o máximo possível de informações fluam deles para mim. Se eles estiverem interessados no que penso, eles sempre poderão ler meus comentários depois de eu ter terminado de processar todas as informações.
De qualquer forma, na maior parte do tempo estou concentrada em um vinho, muito possivelmente com a boca cheia de vinho. Portanto, não tenho muito tempo sobrando para declamar sobre ele. Já que estou ocupada sentindo o aroma dos vinhos e pensando e escrevendo minhas anotações. (E as pessoas se perguntam porque eu não tiro mais fotos e faço mais vídeos …)
Eu gosto que me contem sobre o histórico de certos vinhos. Mas, espero que vocês me entendam quando digo que prefiro julgá-los por mim mesma. Ao invés de me dizerem qual é o sabor dos vinhos.
Encontros
O encontro mais extraordinário que tive com um produtor de vinhos foi na Suíça, em uma adega especialmente bem decorada. Talvez o enólogo fosse novo. E por isso, talvez, ele tenha apresentado seus vinhos acompanhado de um conjunto de notas de degustação impressas, cujas palavras ele leu uma a uma (muitas delas supérfluas) enquanto eu degustava os vinhos ao longo da propriedade. Isso me faz lembrar de um outro hábito ainda mais irritante. O produtor que pensa ser útil apresentar as notas de degustação de outro escritor de vinhos, geralmente positivas, obviamente.
A maioria dos produtores de vinhos, e na verdade, a maioria de nós, escritores de vinhos, parece obcecados por tipos de solo e geologia. Nesta época, é cada vez mais comum os produtores preverem qual será o sabor do vinho. Penso que é quase a norma hoje em dia um produtor apresentar uma gama de vinhos de diferentes terroirs. E, então, descrever e prescrever as diferenças entre eles. Como, por exemplo: “este vinho de vinhedo arenoso de baixa altitude é macio e aberto, ao passo que este vinho, cultivado em nossa íngreme encosta de granito voltada para o sul, é particularmente seco e tenso”.
Isso às vezes é verdade, mas nem sempre. Certamente, vocês já ouviram falar do paladar da adega, e esse é um elemento muito difícil dos produtores escaparem. Eles se acostumam tanto com seus próprios vinhos que se tornam incapazes de saboreá-los objetivamente. Chegando às vezes a ficar insensíveis a falhas.
Acho que a mesma coisa se aplica à maneira como os produtores veem seus próprios vinhos. Convenientemente, esses vinhos devem ser encaixotados e, portanto, independentemente do conteúdo das caixas ser o desejado ou não.
Existem adegas na Borgonha onde você sabe que o vigneron descreverá os vinhos de suas várias parcelas de vinhas exatamente da mesma maneira todos os anos. Porque ele se convenceu de que esse é o caráter daquele terreno. Mesmo quando as variações de caráter de vintage para vintage são enormes. Em alguns anos, as descrições correspondem ao gosto dos vinhos. Em outros anos, definitivamente não.
Discordâncias
E essa discordância pode ser verdadeira para os produtores de todas partes do mundo, podendo se aplicar também a todos os aspectos do vinho. No outro dia, eu estava com um pequeno grupo de colegas provando alguns vinhos do hemisfério sul. Os vinhos eram surpreendentemente bons em uma sucessão de degustação verticais. O produtor estava convicto de que seus vinhos da difícil safra de 2016 não tinham atingido sua maturação esperada. Enquanto que aqueles da safra fácil de 2015 estavam com o melhor sabor no momento.
Na verdade, aqueles de nós, escritores desleixados que não precisavam trabalhar para produzir esses vinhos, eram unânimes em dizer que os vinhos de 2015 não estavam de fato se revelando tão bem quanto os vinhos de 2016 e de 2014. Esse é apenas um exemplo do possível abismo entre produtores e o críticos de vinhos.
Isso sem falar no exemplo mais óbvio dessa relação: um é um realizador, o outro é um parasita.
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