Queijo, o ouro da canastra
No interior de Minas Gerais, entre montanhas e nascentes, centenas de produtores de queijo guardam o conhecimento ancestral que, aliado ao microclima da região, gera um verdadeiro tesouro da culinária tradicional
O primeiro aviso do dia é o sol – que se alonga firme entre uma corpulenta teia de caminhos, porteiras e montanhas. O amontoado de rocha, mata e água é tamanho que o horizonte parece infinito. Na Serra da Canastra, sudoeste mineiro, a força da natureza é uma expressão tão sólida quanto a rocha de quartzito que forma o solo. A região abriga um verdadeiro berçário de nascentes. São tantas as cabeceiras que os cientistas definem o lugar como sendo uma gigantesca caixa d’água. A principal é a do São Francisco – o rio mais emblemático do Brasil.
Por Carolina Pinheiro
Nas margens dos ribeirões, os municípios de São Roque de Minas, Piumhi, Vargem Bonita, Tapiraí, Medeiros, Delfinópolis e Bambuí se destacam com a produção artesanal de queijo – um ícone da cultura popular. Juntos, eles formam um circuito no qual cerca de 800 famílias mantêm viva a tradição secular. De São Roque, principal polo de fabricação do alimento lácteo, chega-se facilmente a inúmeras fazendas.
O município incrustado na montanha faz lembrar um presépio. A cidade concentra 48,5% dos produtores: 377 de acordo com levantamento feito pela Associação dos Produtores de Queijo da Canastra (Aprocan) em parceria com o Sebrae. Todos espalhados pela zona rural. Das estradas de chão batido – de um vermelho sanguíneo – avistam-se as casas, os currais, os pastos, as plantações, todo um universo voltado para o comércio queijeiro. Na roça, o ritmo de trabalho segue o fluxo dos rebanhos. São muitas as histórias a transpor os pastos – uma quantidade a perder de vista.

Queijo premiado
Em Vargem Grande, a 8 quilômetros de São Roque, Ivair José de Oliveira, de 50 anos, e a mulher, Maria Lúcia Pereira Oliveira, de 48 anos, desfrutam de um momento especial em sua trajetória. O queijo que produzem se tornou o mais famoso da serra. “Estamos muito felizes com o reconhecimento. Depois de tanto tempo, estamos finalmente colhendo os frutos do trabalho árduo. Toda essa transformação ajudou muito na melhora de nossa qualidade de vida. Para nós, é gratificante.”
Na propriedade, a ordenha acontece duas vezes ao dia – uma de manhã cedinho e outra à tarde. O queijo vespertino ganhou a medalha Super Ouro no Mondial du Fromage et des Produits Laitiers, em 2019. O concurso, que acontece em Tours, na França, é considerado o mais importante do ramo.
O casal montou o sítio há 13 anos, depois que Maria Lúcia ganhou as terras do pai. “No início parecia loucura, já que nossas condições sempre foram mínimas. Voltei para a roça, comecei a fazer um queijinho na queijaria velha. Só conseguia vender o quilo por 8 reais para o atravessador (intermediário entre o produtor e o consumidor final). Não dava nem para pagar os custos do investimento que tínhamos feito”, afirma Ivair.
Por trás da produção
O queijo atrai a atenção de gente que chega de toda parte para usufruir as belas paisagens da serra, a acolhida do povo hospitaleiro e o sabor exclusivo de uma iguaria tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio cultural e imaterial brasileiro. Agora, com o Selo de Origem, Região do Queijo da Canastra, a marca só pode ser usada nos sete municípios que compõem o perímetro das fazendas produtoras.
Segundo João Carlos Leite, presidente da Aprocan, o microclima associado a outros fatores dá ao canastra identidade própria. “Os franceses chamam isso de terroir. A tradução literal seria torrão de terra, mas o conceito vai muito além. Em sentido amplo, terroir é a simbiose da mineralogia do solo, da altitude, das coordenadas geográficas, do clima, da vegetação e tudo o mais que gera a flora microbiana própria de determinada região”, afirma.
Características únicas
A conexão desses elementos expressa no queijo um sabor único. Esse contexto imprime no produto a cultura, o jeito de ser das pessoas que vivem no local. “A integração entre natureza, cultura e fator humano define o queijo da Canastra. Não existe outro igual ao feito aqui.” Razão pela qual o legítimo Canastra vai parar no cardápio de restaurantes badalados de São Paulo, como o Maní, de Helena Rizzo, e o D.O.M., de Alex Atala.
Pequenos agricultores tomam conta da porção de terra que lhes cabe. As famílias são imensas, mas quem gerencia o negócio é o casal, no máximo, ao lado dos filhos. Os maridos tiram, transportam e acondicionam o leite. Suas mulheres se encarregam de fabricar o queijo. Cada propriedade coloca no mercado cerca de 20 unidades por dia. Um total de 15.900, se somados todos os produtores. Mais de 6.000 toneladas de queijo deixam a Canastra anualmente. O trabalho exige dedicação integral, 365 dias por ano. A qualidade do produto depende da constância.
Tesouro mineiro
A vastidão de belezas naturais tem como ponto de partida a Cachoeira Casca d’Anta, com 186 metros de altitude. A primeira queda do Velho Chico se localiza a alguns quilômetros da nascente histórica. Entre os maciços da Canastra e o da Serra das Sete Voltas, mais de 200 cachoeiras se misturam a uma vegetação de árvores baixas em um território de fronteira dos biomas cerrado e Mata Atlântica.
Os campos que compõem os 200.000 hectares do Parque Nacional da Serra da Canastra – criado em 1972 – servem de hábitat para milhares de espécies de plantas e centenas de animais. De seu perímetro total, apenas 71.000 possuem situação fundiária regularizada. A área protegida conta com mais de 400 espécies de aves e 38 de mamíferos. Várias endêmicas. Por planícies e capões passeiam animais silvestres, como o tatu-canastra, o pato-mergulhão, a onça-parda, o tamanduá-bandeira, o lobo-guará, a ema e o veado-campeiro – todos ameaçados de extinção.
Força feminina
Uma curva no barranco aponta a casa típica do interior. Em uma região de altitude, nas Buracas, Júlia Vitória da Cunha, de 39 anos, abre a janela da cozinha, coloca o bule sobre a chama do fogão a lenha, separa o pão, a manteiga, o doce e o parceiro de todas as mesas na Canastra: o queijo. A mulher morena, de olhos verdes e cabelo amarrado dispõe tudo sobre a mesa e chama o filho para o café. São 5h30 da manhã. A vida já pulsa na serra. Depois de comer, Júlia espalha farelo de milho no quintal. Em um vupt, as galinhas se embolam ligeiras para ciscar. Dali, ela vai dar de comer aos porcos. Do chiqueiro segue para o curral. O rebanho chega de mansinho. Um punhado de vacas se enfileira atrás da cerca. Vai começar a ordenha.
Júlia é a única mulher produtora de queijo da região a tocar uma fazenda sozinha. “Foi questão de sobrevivência. O Vitor era pequeno. Trabalhando em casa, eu dava conta de olhar o menino. Criei o meu filho indo do curral para a queijaria”, diz. Nos primeiros anos, Júlia fazia dois queijos por dia. Ela tinha duas vacas que o irmão arrumou. Hoje, tem 20 e faz 12 peças diariamente.
A jovem simboliza a força feminina em um lugar onde a maioria das mulheres fabrica o queijo – e os homens levam a fama. À exceção de um caso ou outro, os queijos têm o nome do marido, porém a mestra queijeira por trás dele é sua mulher. Cada produtor define o valor de seu produto de acordo com determinados critérios. O valor da peça varia de 40 a 80 reais ou mais, a depender do tipo, do tamanho e da maturação.
Tem de ser artesanal
O modo de fazer queijo em Minas Gerais vem da tradição portuguesa. João Carlos conta que os antepassados o trouxeram da região central de Portugal há mais de dois séculos. “O povo o fazia na Serra da Canastra para presentear autoridades, entre as quais escolares, militares, eclesiásticas e políticas que vinham para cá. Era tido como um presente especial. Tudo o que você poderia dar para ser um bom anfitrião era um queijo como esse. Nunca foi um produto comercial e, por isso, acabou caindo em desuso. Falo de um conhecimento que quase se perdeu. Quando fundamos a associação, resgatamos a receita e olha o resultado? Produzimos um dos queijos mais valorizados do Brasil.”
Um produto que marca presença nas idas e vindas de quem passa pela região, destacando-se, acima de tudo, pela personalidade. O grande segredo da iguaria produzida na serra é o fato de ela ser artesanal. Cada peça tem características singulares, um traço original de um país que – apesar das barreiras – transforma sonho em realidade. Quem prova do queijo que o diga.