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Obrigada, Shiva!

Não podemos contar a história de Mara Alcamim, chef e proprietária do restaurante Universal, em Brasília, sem mencionar um dos deuses supremos do hinduísmo

A vida em meio às panelas não estava nos planos de Mara Alcamim. Nascida e criada em Brasília, ela conta que até gostava de cozinhar desde bem pequena, mas que havia o estigma de que mulher não deveria estar dentro de cozinha profissional, por isso, não assumia a vocação. Antes de se dedicar ao que realmente queria fazer, Mara tentou administração, mas largou no primeiro ano e, para pagar o curso de fotografia em Nova York, foi parar exatamente no lugar do qual havia fugido até então, a cozinha.

Como tudo começou…

“Sempre tive um contato muito forte com a roça, pois apesar de ter nascido em Brasília, meus pais eram da roça e meus avós ainda moravam lá. Na infância, não tínhamos muito dinheiro para sair para comer e, olhando para trás, ter contato com essa comida regional-tropeira foi essencial para mim”, afirma a chef. Ela conta que todo o alimento era plantado e produzido na chácara, as frutas, as verduras, o açafrão, e que a comida da semana era bem regional, com galinhada, frango no molho, carne de lata. Agora, ela está no processo de resgate desses alimentos.

Apesar de ter lutado contra a vocação, após a temporada de três anos em Nova York, Mara voltou para Brasília decidida a abrir o Universal. Um restaurante diferente de tudo a que a cidade estava acostumada, que causou muita polêmica e ensinou muita gente a comer bem.

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“A falta de dinheiro fez do Universal o que ele é hoje”

E está aí o segredo da essência e da identidade única do Universal, um dos restaurantes mais irreverentes do Brasil e, com certeza, um dos melhores de Brasília, que – entre trancos, barrancos e provações – acaba de completar 21 anos de muito sucesso.

“Essa identidade do Universal começou por total falta de dinheiro, não vou mentir. Comprávamos tecido para fazer cortina e sobrava, aí eu o colava na parede. Aparecia uma rachadura, sobre ela eu colocava um quadro. Chegava cliente e dava um anjo de presente. Minha mãe fazia um lustre e o trazia para cá. Fora isso, por muitos anos cozinhei para o Itamaraty, representando o Brasil. Então, fui para a Índia, o Sri Lanka, a Nicarágua, a Espanha, a Turquia e, de cada viagem, trazia coisas para o restaurante”, diz Mara, divertindo-se. “Mas é uma bagunça organizada, sei aonde está tudo e, se sumir, sinto falta. A primeira coisa que coloquei no Universal foi a cobra rosa de pelúcia, que ganhei na Disney.”

Universal Diner -Mara Alcamin - Obrigada, Shiva!
Fotos RJ Castilho

Bagunça aconchegante

Universal Diner - Mara Alcamin - Obrigada, Shiva!
Fotos RJ Castilho

À primeira vista pode até parecer uma “bagunça”, mas não há lugar mais aconchegante que o Universal, que recebe todas as tribos e raças e deixa todos à vontade. Não há quem não fique encantado. E talvez um pouco perdido do caminho da porta, que tem parte de um Fusca pendurado na parede, até a mesa, passando pelo bar, com direito a pole dance (quer irreverência maior?), e por todas as decorações que contam os mais de 20 anos de história do restaurante.

Mas nem tudo foram flores pelo caminho e Mara Alcamim teve muito trabalho para conquistar a clientela e mostrar que cabia algo novo em Brasília. “Quando eu servia o risoto, as pessoas reclamavam que o arroz era duro. Brasília tem 50 anos, isso foi há 21 anos, é uma história gastronômica em construção ainda. Fora isso, no começo, as pessoas deixavam de frequentar o restaurante, porque eu recebia homossexuais. Eu tive de quebrar muitos paradigmas”, afirma.

A boate que existia na parte de baixo deu lugar a uma cozinha de preparo e, segundo Mara, foi quando ela entrou de cabeça na gastronomia. “Senti necessidade de mostrar para as pessoas que minha comida era boa, sim, que o Universal não era só um lugar divertido e bagunçado.”

Essa necessidade de se provar fez com que, sete anos depois da abertura do Universal, a chef se perdesse um pouco nos objetivos. Foi quando decidiu abrir mais duas casa, o Zuu e a Quitinete.

Universal Diner - Mara Alcamin - Obrigada, Shiva!
Fotos RJ Castilho

Menos é mais

A frase é bem antiga, mas Mara só aprendeu o real significado dela quando quebrou algumas casas e percebeu que não adiantava ter diversos estabelecimentos e não conseguir acompanhar nenhum  de perto. “Abri o Zuu com a ideia de ter no cardápio o que fosse de melhor no Brasil e no mundo. Todas as carnes eram feitas na brasa, tinha o fogão a lenha e, nessa época, tive maior contato com o movimento Slow Food, comecei a visitar pequenos produtores, a trazer para Brasília produtos de outros cantos do Brasil”, diz Mara.

Assim surgiu também a Quitinete, a primeira padaria especial de Brasília, que mais uma vez as pessoas não entenderam. “Era restaurante, padaria, delicatéssen, feira de orgânicos, vendia panelas, enfim, você encontrava de tudo lá. Mas, em 2011, eu quebrei, porque abri uma indústria. Gastei 4 milhões de reais para fazer tudo e a vendi por 200.000 reais. Na minha cabeça a Quitinete era algo inovador e que seria reproduzido em outros lugares. Foram projetos nos quais eu me envolvi em tudo. Desde a parte arquitetônica, layout do cardápio, até os pratos, mas que não deram certo. Vendi tudo e só me restou o Universal. Estou escrevendo um livro sobre ‘o ano que eu morri’, que foi 2011”, afirma a chef.

Apesar das dificuldades

Apesar de todas as dificuldades, ela aprendeu muito com todos esses erros e com a dor de ter de fechar os negócios. “Eu queria fazer comida boa, mas fui pega pela moda e pela vaidade. Foram os anos em que eu quis abrir tudo e ficava encantada. Isso porque todas as minhas casas estavam cheias e eu ganhava muitos prêmios”, diz Mara.

Hoje, a chef consegue enxergar seus erros. “Quebrei para aprender a virar gente. A primeira coisa que aprendi é que quanto mais coisas eu tinha, menos eu estava nesses lugares. Você tem de estar dentro do seu negócio, não tem mágica. Agora, estou no Universal todos os dias, colada na equipe o tempo todo e descobri que é infinitamente melhor ter uma casa muito bem estruturada do que várias mais ou menos”, diz, concluindo.

Panela Candanga

Há cerca de três anos, Mara Alcamim passou a levantar a bandeira da comida de raiz. “Quando comecei a fazer carne de lata, ninguém sabia o que era. Fui convidada para ir ao MasterChef – programa de gastronomia da Band – e levei galinha caipira e pequi. Nenhum participante sabia preparar. Eles sabem fazer confit e comida francesa, mas pede para fazer uma rabada, um sarapatel, ninguém faz ideia. Hoje, bato na tecla de que primeiro temos de aprender a fazer o que é nosso, muito benfeito, depois fazemos o que é dos outros. Esse é o meu legado”, diz a chef.

Seguindo essas linhas, junto de sua mulher, a produtora de eventos Luciana Fabrino, e dos amigos e chefs, Gil Guimarães, do Baco Pizzaria, e Francisco Ansiliero, do restaurante Dom Francisco, Mara Alcamim criou o movimento Panela Candanga, para descobrir o que o povo brasiliense gosta de comer.

Carne de lata suína com farofa goiana e mexido de arroz
Carne de lata suína com farofa goiana e mexido de arroz

Descobrindo a cozinha brasiliense

Filé-mignon ao melaço de cana com risoto de queijo coalho
Filé-mignon ao melaço de cana com risoto de queijo coalho

A chef conta que o projeto surgiu de seu questionamento sobre quais eram as comidas de Brasília. “Fui a um evento do Jamie Oliver, no qual acampei na fazenda dele e comecei a perceber que ali era tudo orgânico. Passei a olhar para o tanto de gente que produzia coisas legais em Brasília e não era valorizada. Decidi que quando voltasse iria mudar isso”, diz. Hoje, os quatro chefs se encontram semanalmente na Ceasa, para ajudar o pequeno produtor. Tentam mostrar que, de repente, a embalagem não está agregando, ou o nome, enfim, dão dicas, para movimentar essa cadeia. “O que falta é a união dos chefs. Nós precisamos sentar mais e falar sobre os ingredientes. Ir atrás, conhecer, conversar, isso gera movimento, gera venda. Para uma cidade jovem, acho que é o começo”, diz.

Além disso, ela garante que o projeto também beneficia os funcionários. “Trabalho com muitas pessoas de origem humilde e, antes, elas tinham vergonha de contar coisas de casa, pela pobreza, pela escassez. Quando passei a enaltecer a comida regional, eles começaram a me trazer receitas do que eles comiam quando crianças e a perceber que a raiz deles também importa, que eles podem ter orgulho.”

Pratos icônicos

Para Prazeres da Mesa, Mara optou por quatro pratos que representam sua cozinha ao longo dos 21 anos de história. “O pato é o clássico e está no cardápio desde o começo. Naquela época eu achava o máximo e tinha de ter essa proteína no menu. Ele é servido com minimoranga que compro de um produtor há 20 anos”, afirma a chef.

O preparo leva molho de tangerina e a moranga é recheada com purê de mandioquinha e queijo brie. Tem também o filé com melaço, que faz muito sucesso e está na casa há oito anos. A carne de lata ganhou duas versões, pois é o preparo que a chef garante que pegou para difundir. “Vou falar da carne de lata até perceber que todo mundo já sabe o que é e sabe preparar. Hoje, é um prato icônico que eu peguei para difundir mesmo. Eu a fiz de duas maneiras, como entradinha e como prato principal”, diz.

Herança da vó

Mara Alcamim conta que por ter crescido indo para a fazenda de sua avó, sem energia elétrica, ela não tinha onde guardar o porco inteiro. Então, ela cortava e armazenava na própria gordura, dentro de latas. “A carne é o único produto dessa receita, se ela for ruim, não ficará bom. Eu só faço esse preparo com porco caipira”, afirma.

O processo demora cerca de 5 horas, o porco muda de cor, a gordura fica mais densa. Mas quando você achar que está pronta, pingue um pouco de gordura na chama do fogão: “Se fizer barulho e subir uma chama alta, ainda está com água, ou seja, não está pronta de jeito nenhum. A água estraga todo o preparo, a carne mofa, por isso é o momento mais delicado. Se não fizer barulho, está pronta”, diz, concluindo.

Peito de pato rosado ao molho de tangerina e pimenta-de-cheiro, e minimoranga recheada
Peito de pato rosado ao molho de tangerina e pimenta-de-cheiro, e minimoranga recheada

Mara Alcamim 2.0

A Mara que começou o universal há 21 anos não é a mesma. Shiva, então, veio na minha vida e isso foi tudo. Eu queria ser dona do mundo. Hoje eu quero só ser dona de mim mesma, o que já é um trabalhão.

 

A chef diz que está em um caminho de autoconhecimento, de fazer comida boa, ser feliz em seu casamento, ser feliz com os amigos e que essa “vibe” só lhe tem feito muito bem.

Sobre os planos para o futuro, ela é categórica. “A Luciana e eu compramos uma terra na Chapada. Meu projeto é que daqui a cerca de cinco anos eu esteja produzindo lá tudo o que utilizo no Universal”. Por conta dessas viradas e apostas é que Mara Alcamim continua sendo a “primeira-dama” de Brasília, não importa o governo.

*Reportagem publicado na edição 187, de março 2019

Carne suína de lata com farofa goiana, vinagrete e rapadura
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