Picadinho rima com vinho?
Picadinho, ou picadinho de carne – para quem prefere a receita com nome e sobrenome –, ganhou popularidade nas mesas do eixo Rio-São Paulo e, além de seu fácil preparo e resultado reconfortante, mostra vocação para ter como escolta vinho tinto
Embora a receita de picadinho tenha origem humilde, uma vez que na era medieval as carnes menos “nobres” eram destinadas aos servos, que as picavam em pedaços pequenos para conseguir maior rendimento e maciez, a versão que vemos hoje pode ser dos mais nobres cortes bovinos, como o filé-mignon. E é provável, portanto, que a receita tenha chegado aqui, à Terra de Santa Cruz, por mãos portuguesas que ostentam prato homônimo na Ilha da Madeira (ponto de parada antes das naus cruzarem o Atlântico).
Além disso, sua difusão ocorreu na década de 1950, no cenário boêmio de São Paulo e Rio de Janeiro (não convém entrar aqui nos meandros dessa disputa), compreensível pelo rápido preparo, o calor e a sustança, sem esquecer o principal, seu sabor. Os pequenos pedaços de carne, selados na chapa, ganham superfície caramelizada muito maior que no formato tradicional de steak, liberando para o caldo todos os sabores gerados – hoje, a bem conhecida reação de Maillard. Um dos troféus do picadinho é dividir com o tradicional virado à paulista a opção de prato feito (PF) nas segundas-feiras, com a responsabilidade de trazer algum conforto ao início da semana dos trabalhadores.
Já que hoje conseguimos dedicar um tempo extra para cozinhar em casa, o picadinho tem vantagem extra de utilizar apenas uma panela. E por que não incrementar a receita com uma taça de vinho? Claro que a primeira opção está no grupo dos tintos, uma vez que a receita leva um pouco de vinho tinto (ao menos, nesta versão) e alguns ingredientes que lhe dão complexidade, como o salsão, o bacon e o molho inglês. Sabores complexos de um lado, melhor atacar com simplicidade do outro. Essa foi a chave para os melhores resultados. Vinhos teoricamente simples, mas com boa intensidade e estrutura sobressaíram. Nessa prova colocamos diversos estilos de tintos para comprovar que, embora tintos e carne vermelha formem par certeiro, alguns mostram desenvoltura maior; confira.
Picadinho
2 porções
- 400 g de alcatra picada em tiras altas (1cm x 2cm)
- 40 g de bacon cortado em tiras finas
- 200 ml de água
- 1 colher (sopa) de molho inglês
- 1 colher (sopa) de azeite
- 2 tomates médios, sem pele e semente, cortado em cubos pequenos
- 1 cebola pequena cortada em tiras finas
- 1 talo de salsão cortado em brunoise
- 70 ml de vinho tinto
- 1 dente de alho picado
- Sal e pimenta preta a gosto
- Farofa de farinha de mandioca tostada, com cebola e alho tostados a gosto
1 Tempere a carne com sal e pimenta e sele os pedaços em uma frigideira funda, aquecida com o azeite. Retire a carne e reserve. 2 Na mesma frigideira, coloque o bacon, a cebola, o salsão, o alho e o tomate. Mexa bem, incorporando as raspas do fundo da panela. 3 Refogue bem até que os vegetais comecem a derreter. Adicione o vinho e deixe evaporar, por um minuto. 4 Adicione o molho inglês e a água fervente. Cozinhe, até que os vegetais comecem a derreter. 5 Retorne a carne selada e cozinhe, por mais 10 minutos. 6 Por fim, sirva com farofa de farinha de mandioca tostada, com cebola e alho tostados.
Falernia Reserva Syrah 2015
- Elqui, Chile | R$ 81,75 – Premium
- 91 pontos
A vinícola foi uma das primeiras a explorar a região de Elqui, extremo norte do Chile, próximo ao Deserto de Atacama. Na taça, frutas vermelhas maduras (morango, cereja e framboesa), com bala de leite, pimenta vermelha, cravo e canela. Na boca, os anos de garrafa fizeram bem e o vinho mostra ótima integração e fluidez. Os 14% de álcool não se notam; há boa estrutura com taninos finos e bem amalgamados, além de ótima combinação ácido-salgada, que deixa o vinho vibrante. Final com tabaco e frutas vermelhas cristalizadas.
A combinação: ★★★★★
O grande equilíbrio do vinho é uma vantagem por apresentar a mesma intensidade do picadinho. Houve conexão exemplar, sem arestas nem sobras. A fruta contida funciona como complemento para o molho da carne e os taninos e a acidez levantam a expressão da dupla.
Château La Mondette 2016
- Castillon – Bordeaux, França | R$ 104,61 – Adega Alentejana
- 90 pontos
A expressão clássica de Bordeaux, contida na intensidade dos aromas, mas com boa complexidade de notas. Frutas negras e vermelhas maduras (82% Merlot e 18% Cabernet Sauvignon), cedro e especiarias (canela e páprica). Na boca, segue o estilo clássico, com taninos firmes e com certa austeridade, ótima acidez, álcool bem casado e final bastante especiado, com couro e terra.
A combinação: ★★★★★
O rótulo funciona como molho para vinho, o que significa que possuem a mesma intensidade. Os taninos que, sozinhos, podem parecer duros, com o prato se tornam aveludados e equiparam as estruturas dos dois lados. Vale o mesmo com as especiarias que passam a fazer parte de um todo e temperam a combinação, que é ótima, ambos foram valorizados.
Clos des Fous pour Ma Gueule Pinot Noir 2015
- Itata, Chile | R$ 97 – World Wine
- 90 pontos
O enólogo François Massoc conhece como poucos a arte de vinificar a Pinot Noir e, mesmo neste vinho teoricamente simples, a expressão é interessante. Frutas negras frescas, flores, ervas frescas, mentol e toque terroso. O ataque é fluido e delicado, como se espera da casta, com fruta ainda mais fresca na boca e toque de especiarias. No final, nota-se leve calor e taninos finos, com vigor um pouco acima do conjunto. É recomendada uma passagem pelo decanter.
A combinação: ★★★★
A acidez do vinho fica em primeiro plano e facilita a combinação, pois dá leveza à combinação. Apesar de as frutas perderem um pouco de sua intensidade, abre-se um lado cítrico na boca e os taninos são bem domados pela carne, arredondando essa aresta do vinho. Apenas o toque alcoólico no final o separou da excelência.
Finca Agostino Inicio Cabernet Franc 2017
- Mendoza, Argentina | R$ 106 – Wine Lovers
- 87 pontos
Nariz simples, mas com boa tipicidade da casta. Frutas negras maduras e em compota, com pimentão defumado e baunilha. Na boca é untuoso, com boa estrutura, mais fruta negra em compota e taninos finos com leve rusticidade final. A acidez é suficiente para equilibrar o conjunto e o final tem notas terrosas ao lado da fruta.
A combinação: ★★★★
O prato conseguiu dar um upgrade ao vinho, sem ofuscá-lo. A doçura da fruta em compota foi atenuada, sem apagá-lo, deixando o vinho mais fácil de beber. Os taninos com pequenas arestas também foram domados e se integraram ao molho da carne. Boa combinação, em que ambos foram valorizados.
Kaiken Estate Malbec 2018
- Mendoza, Argentina | R$ 86,29 – Qualimpor
- 91 pontos
Projeto da família Montes (Chile), em Mendoza. A Malbec aqui ganha expressão que apenas se costuma ver em linhas superiores. Nariz floral, com violeta e ameixa preta fresca, com leve terroso e toffee. Bastante limpo e preciso. A textura tem boa fluidez, ajudada pelo ótimo frescor e a trama de taninos muito finos aporta estrutura no ponto certo, sem ofuscar a delicadeza da proposta, ser elegante e sem a maquiagem de Malbec. Final com toque de alecrim.
A combinação: ★★★
Assim como no caso da Pinot Noir, a combinação reforça a acidez no primeiro plano. Por outro lado, o aroma floral não casa bem com o prato e domina o conjunto. A delicadeza do vinho também é ofuscada pelo prato, restando apenas a acidez como elo de ligação.

Vallontano Tannat Reserva 2014
- Vale dos Vinhedos, Brasil | R$ 78,50 – Mistral
- 89 pontos
Uma das pequenas e consistentes vinícolas do Vale dos Vinhedos. Este Tannat tem boa intensidade aromática com frutas vermelhas maduras, cacau, amêndoa e coco tostados. Certa evolução na garrafa fez bem ao vinho, com ótima integração do álcool, e taninos que se percebem em grande quantidade e muito polidos, dando sensação aveludada. O frescor está presente e não indica nenhum cansaço do vinho. Final com cravo e couro.
A combinação: ★★★
Boa parceria criada pela conexão do lado animal (couro, embutidos curados) do vinho e a carne com o toque de bacon. A acidez e as notas de especiarias mantêm o vinho vivo na boca, mas a fruta é dominada pelo molho e perde a intensidade. Além disso, taninos e acidez se integram ao caldo do picadinho, faltando apenas o suporte da fruta.
Alves Vieira Tinto Alentejano 2018
- Alentejo, Portugal | R$ 84 – La Pastina
- 88 pontos
Nariz exuberante com muitas flores e cereja madura. Bastante limpo, aromático, com estrutura leve e taninos discretos. Feito com Trincadeira, Touriga Nacional e Alicante Bouschet – as duas primeiras dominam o conjunto pela leveza e as notas florais e de especiarias. Nada da potência dos clássicos alentejanos.
A combinação: ★★
A potência dos aromas dominam a interação com o picadinho e, apesar de não causar incômodo, cada um segue seu caminho de forma isolada, com os aromas dominados pelo vinho e os sabores pela receita. Um caso de vinho que acompanha o prato, mas não harmoniza.
Jacob’s Creek Classic Shiraz 2018
- South Eastern Australia, Austrália | R$ 66,90 – Casa Flora
- 87 pontos
A marca lançada em 1976 é um clássico australiano. No nariz, traz boa concentração de frutas negras maduras (cereja e mirtilo) com baunilha, cacau e pimenta-preta. O álcool está muito bem casado no conjunto leve, em que taninos e acidez são discretos, e há leve doçura. Ademais, é linear do começo ao fim, com mais tostados no final.
A combinação: ★★
Embora as notas tostadas do vinho e de pimenta-preta combinem de forma interessante, a fruta é ofuscada pelo picadinho, da mesma forma que a estrutura muito redonda e leve é encoberta pelo prato. No entanto, apenas um ponto de conexão (tostado) não foi suficiente para fazer brilhar um dos lados.