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Restaurante Dona Irene tem cardápio à moda dos czares

Aberto em 1964, o Dona Irene é um dos poucos no Brasil especializados em gastronomia russa. Resultado de uma eterna história de amizade, ali é possível degustar um banquete inspirado nos rituais da aristocracia do século XIX

Seu Hisbello está sempre à vista. Enquanto os comensais apreciam um verdadeiro banquete, ele perambula entre as mesas para ouvir e contar histórias. “Isso aqui é meu parque de diversões”, afirma. “Minha única função é receber e conversar. Conheço muita gente, me divirto e aprendo pra caramba.” E é em uma dessas narrativas que se ouve contar sobre o Restaurante Dona Irene, uma das raras casas no Brasil especializadas em culinária russa.

Engenheiro aposentado, José Hisbello Campos era funcionário da Light, empresa de energia elétrica. Em 1964, precisou realizar um projeto na zona rural de Teresópolis, região serrana do Rio de Janeiro. “Enquanto tirava as medidas do loteamento, um casal de idosos que vivia no terreno ao lado chegou pertinho falando em russo”, diz. “Por coincidência, eu também falava um pouco do idioma. Eles não acreditaram no que estavam ouvindo.”

Maria Emília e José Hisbello
Maria Emília e José Hisbello, o casal que até hoje está à frente do Restaurante Dona Irene

O casal era Mikhail Flegontovich Smolianikoff e Eupraxia Wladimirovna, imigrantes russos que fugiram do país com a chegada da Revolução de 1917. Mudaram-se para a China, onde ficaram por 25 anos, até que o governo chinês decidiu expulsar estrangeiros do país. Tentaram a vida no Japão, em Singapura e nas Filipinas. Sem sucesso, finalmente imigraram ao Brasil, estabelecendo-se no Paraná e depois em Teresópolis. “A situação deles aqui no Rio de Janeiro era muito difícil”, afirma seu Hisbello. “Eu passava por lá todas as semanas, para o projeto, e Eupraxia se dispôs a me ensinar russo. Comecei, com isso, a ajudá-los a se adaptar ao país. E esse foi o início da grande amizade de minha vida.”

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Novos horizontes

Restaurante Dona Irene | Foto: RJ CastilhoA fim de auxiliar Miguel e Irene – como eram conhecidos no Brasil – a melhorar de vida, Hisbello teve a ideia de abrir um restaurante, batizado de Dona Irene, para servir as delícias preparadas pela russa, cozinheira de mão-cheia. “Comprei uma casa e montei um restaurante simples, com apenas uma mesa, que pegamos da sala de jantar deles”, diz. Na cozinha, Irene preparava as receitas que aprendeu na Rússia durante o período em que viveu por lá. Porém, como já tinha mais de 60 anos, Maria Emília, a mulher de Hisbello, se dispôs a ajudá-la, aprendendo assim todos os preparos e segredos. Enquanto isso, José Hisbello fazia propaganda aos colegas de trabalho, para que fossem visitar o local nos fins de semana, fazendo com que ganhassem cada vez mais clientela.

“Até que, um dia, apareceu por lá Adolpho Bloch, dono da revista Manchete, que havia fugido da Ucrânia aos 10 anos de idade. Ele foi o grande patrocinador desse restaurante. Amava a comida e mandava gente ‘pra burro’.” Com isso, foi preciso ampliar o perímetro do estabelecimento e Hisbello e Maria Emília compraram outra casa, na qual ficaram por mais 30 anos.

Irene e Miguel, já idosos, administraram o negócio até 1986, deixando o legado aos fiéis amigos, que, tempos depois, montaram o restaurante em uma casa maior e que hoje abriga o Dona Irene. “Eu mesmo construí tudo isso. Minhas filhas pintaram e decoraram o local e Maria Emília prepara as receitas”, afirma Hisbello. “Ela tem 85 anos e fica na cozinha até hoje. É ela quem faz a vodca e tem a receita, mas não ensina o preparo a ninguém. Não passa o legado de jeito nenhum, nem adianta pedir.”

Tesouros da culinária russa

As receitas disponíveis no Dona Irene são as mesmas servidas nos tempos da dinastia Romanov, seguindo os rituais da aristocracia da época. A refeição era dividida em quatro etapas, tendo a fartura como ingrediente principal.

Na primeira, são servidos os zakuskis, que significam “pequenos bocados”. O cliente pode provar cerca de dez entradinhas frias, como arenque, salmão, patês e saladas. Para acompanhar tantas receitas, serve-se a vodca, a alma da refeição russa. Elaborada artesanalmente, a bebida tem sabor único e chega à mesa envolta em uma pedra de gelo, a fim de permanecer na temperatura ideal durante toda a refeição.

Na sequência, os preparos intermediários consistem nos clássicos borscht – uma sopa de beterraba – e pirozhkis, pequenos e irresistíveis pastéis de carne, além de asas de frango gratinadas, suflê de berinjela, entre outros.

Os pratos principais são os únicos que o comensal deve escolher no momento da reserva. Há diversas opções, como frango à Kiev; varênique, massa típica da Ucrânia recheada de batata, acompanhada de filé-mignon e cebolas empanadas; caquille, preparo semelhante a um suflê de peixe com molho branco e camarões; podjarka, prato feito de filé-mignon e frango, com champignons, molho de ervas e batatas; e o tão apreciado beef stroganoff, servido junto de arroz e batata frita.

A quarta e última etapa é reservada às sobremesas, dentre as quais se destacam o supremo de nozes com chocolate, a charlotte russa e as panquecas flambadas em conhaque. Todas elas podem ser ornadas com chá ou cafezinho e ainda mais histórias de seu Hisbello sobre sua bela e eterna amizade.

beef stroganoff_Restaurante Dona Irene | Fotos: RJ Castilho
Beef stroganoff
* Matéria publicada na edição 203 de Prazeres da Mesa

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Beatriz Albertoni

A paulistana divide-se entre duas paixões: jornalismo e gastronomia. Formada pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, a repórter está na redação de Prazeres da Mesa desde 2015. Adora conhecer histórias, viajar e apreciar um bom show de rock, além de nunca recusar bolo acompanhado de cafezinho.

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