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Salve, Jorge!

Dos terreiros para os bares e restaurantes, a feijoada de Ogum conquista o Rio

POR URSULA ALONSO MANSO, DO RIO DE JANEIRO
Vinte e três de abril é dia de vestir vermelho e branco. De ir à missa ou ao terreiro. E de comer aquela feijoada, regada a samba e cerveja. Antes restrita aos terreiros de umbanda e candomblé ou às quadras de escolas de samba, a feijoada de São Jorge – ou feijoada de Ogum – ganhou os bares e restaurantes do Rio de Janeiro. “Todo mundo faz feijoada no dia de São Jorge e todo mundo lota a casa”, diz a chef do Aconchego Carioca e do Sofia, Kátia Barbosa, a rainha do bolinho de feijoada.

A relação da feijoada com Ogum se estabelece no Brasil fundamentada em dois pilares, como afirma o professor, historiador e escritor Luiz Antônio Simas. “Primeiro, porque Ogum é o orixá guerreiro e feijoada é a comida que dá sustância. Segundo, porque o elemento de Ogum é o ferro e o feijão é rico em ferro”, afirma. “Ogum é um general na mitologia iorubá e São Jorge, um soldado romano no cristianismo”, acrescenta, explicando o sincretismo religioso que associou Ogum a São Jorge. “Nas culturas afro-brasileiras, não existe distinção entre o sagrado e o profano. São culturas que profanam o sagrado e sacralizam o profano. Assim, a feijoada ofertada a Ogum ultrapassa os limites dos terreiros e chega aos botequins.”

Entre os botequins que vão servir a feijoada de São Jorge – ou de Ogum – no próximo dia 23 estão o Suru Bar e o SuruBafo, ambos na Lapa. “É um dos feriados mais democráticos do Rio, já que cada um festeja do seu jeito, dentro da sua fé”, diz o bartender Igor Renovato, sócio dos bares onde o santo guerreiro tem espaço especial em altares. Por lá, a feijoada é preparada pela chef Yandara Karuna, que, além de paio, carne-seca e costelinha suína, também mergulha a língua bovina no feijão preto. A escolta é feita por arroz branco, farofa, couve mineira e um delicioso e inventivo vinagrete de laranja – uma alternativa às clássicas rodelas da fruta que normalmente acompanham as feijucas.

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No tradicionalíssimo bar e restaurante Aurora, que completa 127 anos neste 2025, a feijoada é servida somente às sextas e aos sábados. “Mas, independentemente do dia da semana, também temos a feijoada de São Jorge. Começamos a servi-la em 2020, quando acordei com o foguetório no dia do santo”, conta a chef Ana Beatriz Capão, referindo-se à alvorada de São Jorge, uma queima de fogos que costuma acontecer em comunidades e igrejas católicas por volta de 5h da referida data. “Estávamos em plena pandemia e resolvi colocar o prato no delivery, já que, à época, ninguém podia sair à rua pra curtir a feijoada com um sambinha…” Desde que chegou ao Aurora, em 2014, a chef aboliu o uso da panela de pressão no preparo da feijoada. “É um prato tradicional na casa, que, por sua vez, é centenária, de uma época em que a panela de pressão ainda nem tinha chegado ao Brasil, por isso quis voltar ao modo de fazer de antigamente.” 

Ana Beatriz, que também é sócia do Aurora, prepara a feijoada de véspera, com orelha e pé de porco, linguiça, costela, lombo e carne-seca, como manda o figurino. “Sempre no fogo baixo, para o feijão não desmanchar, são umas três horas de cozimento bem lento”, conta. A iguaria chega à mesa numa panela de barro fumegante, garantindo temperatura e cremosidade até o final da refeição. Para acompanhar, arroz, farofa de bacon, torresmo, couve no alho, laranjas Bahia descascadas e shots de batida cítrica, com cachaça, limão e abacaxi, a fim de ajudar na digestão daqueles que exagerarem um pouco. 

Desde 2019, São Jorge é, junto com São Sebastião, padroeiro do estado do Rio de Janeiro. E santo de devoção da cozinheira Kátia Barbosa. “Nasci no mês de Ogum”, afirma Katita. No Sofia, restaurante batizado em homenagem à sua mãe, Kátia oferece feijoada todas as sextas, sábados e domingos, servida na panela de ferro. Já no dia de São Jorge, ela arma um grande bufê. “Minha feijoada é preparada com o feijão vermelho, que tem um sabor mais delicado e, quando cozido, adquire coloração marrom, de chocolate”, conta. “Uso todas as carnes, não somente as chamadas carnes nobres. Se a feijoada não tiver orelha ou rabo, ela perde sabor”, diz. “E, quando encontro pescoço de porco, ele também vai pra panela”, acrescenta.

Para servir a feijoada num sábado, por exemplo, Katita começa a dessalgar as carnes na quinta-feira. Na sexta à tarde, é hora de levar tudo à pressão. “Com folhas de louro! As pessoas pensam que o louro é para adicionar sabor, mas não é só isso. Ele é digestivo”, explica. Uma vez pronta, a feijoada dorme de um dia para o outro na geladeira. “Assim, a gordura sobe para a superfície e nós podemos retirar o excesso, para o prato não ficar tão pesado”, ensina. Na hora de servir, é só preparar um refogado de alho e sal e deixar tudo ferver. “Não coloco cebola porque ela pode azedar o prato.”

Um dos pratos que melhor representa esse nosso Brasil brasileiro, a feijoada também caiu nas graças dos turistas estrangeiros. Que o diga a chef Sol Nunes, à frente do restaurante Pérgula, no Copacabana Palace, A Belmond Hotel, que tem, aos sábados, um disputado bufê de comida brasileira – em que a feijoada é a estrela, lógico. “Cerca de 60% dos hóspedes do Copa são estrangeiros e eles ficam encantados com a feijoada”, afirma Sol, que tem uma equipe de quatro pessoas dedicadas a cuidar do prato, cujo preparo começa sempre na quinta-feira. “Feijoada é um prato que exige paciência, nós vamos cozinhando as carnes aos poucos, uma de cada vez, para ir saborizando o feijão.” E, muito além do paio, lombo, calabresa, costelinha, orelha e rabo, Sol ainda faz questão de oferecer uma feijoada vegana, com tofu e vegetais. A feijoada do Copa é embalada por samba ao vivo. Ao final, acaba virando uma grande festa. Prova de que uma boa feijuca é bem mais do que uma comida que dá sustância e alegra a alma – é um programa completo! 

Aurora – Rua Capitão Salomão, 43, Humaitá, Rio de Janeiro, RJ, tels. (21) 2537-2755 e 99567-0163; @aurorahumaita

Pérgula – Copacabana Palace, A Belmond Hotel, Avenida Atlântica, 1.702, Copacabana, Rio de Janeiro, RJ, tel. (21) 2548-7070; @belmondcopacabanapalace

Sofia – Rua Barão de Iguatemi, 257, Praça da Bandeira, Rio de Janeiro, RJ; @sofiarestauranterj

SuruBafo – Rua da Lapa, 128, Lapa, Rio de Janeiro, RJ; @surubafo.rj

Suru Bar – Rua da Lapa, 151, Lapa, Rio de Janeiro, RJ, tel. (21) 3591-1524; @surubar.rj

Aprenda com quem sabe

Aurora: A chef Ana Beatriz Capão recomenda cozinhar a feijoada sempre em fogo baixo. Assim, os grãos de feijão não desmancham antes de as carnes atingirem o ponto ideal.

Pérgula: Não se deve – jamais – dessalgar as carnes em água fervente, como enfatiza a chef Sol Nunes. As carnes precisam ser dessalgadas na geladeira, sempre trocando a água e mantendo os cortes hidratados, para que não ressequem.

Sofia: Segundo a chef Kátia Barbosa, o feijão deve cozinhar com umas folhinhas de louro, pois elas ajudam na digestão. E a feijoada precisa descansar de um dia para o outro na geladeira, pois assim a gordura vai para a superfície e é possível retirar o excesso.

Suru Bar e SuruBafo: Nos bares da Lapa, o vinagrete de cebola roxa, tomate, pimentão vermelho, azeite e vinagre ganha a companhia de pedacinhos de laranja Bahia e um pouco do suco da fruta. Tudo para garantir acidez na medida certa.

A receita de Kátia Barbosa

1 kg de feijão vermelho

500 g de linguiça calabresa

500 g de paio

500 g de bacon

500 g de lombo suíno

500 g de carne-seca

200 g de orelha de porco

200 g de rabo de porco

1 kg de costelinha suína

4 folhas de louro

Óleo de soja

Sal a gosto

Alho picado a gosto

1 Dessalgue a carne seca, o lombo, a costelinha, o rabo e a orelha de um dia para o outro na geladeira, trocando a água duas vezes. 2 Cozinhe o feijão e a carne-seca em 2 litros de água, por 10 minutos depois que a panela pegar pressão. 3 Espere a pressão sair totalmente, abra a panela e acrescente o restante das carnes e as folhas de louro. Cozinhe por mais 30 minutos. 4 Leve a feijoada à geladeira, de um dia para o outro. 5 Retire o excesso de gordura que estará depositado na superfície. Prepare um refogado com um fio de óleo, alho e sal, adicione na feijoada e deixe ferver por 5 minutos. 6 Sirva com arroz branco, farofa, couve, torresmo e rodelas de laranja.

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