Sem preconceitos
(*) POR ALEX ATALA
Sempre fui um grande fã de ostras, mas sempre fui reticente quanto a ostras quentes. Só de me lembrar das gratinadas, fico enjoado. Acredito que temos de vencer os preconceitos. É um exercício que costumo fazer. Até porque, vale dizer, já comi boas ostras gratinadas, mas foram bem poucas.
Para mim, as ostras são como um beijo do mar: encantam-me o sabor, a presença do iodo, a nota marinha, a textura. Mas foi difícil acertar uma receita quente com elas. Duas vezes mais complicado foi superar esse desafio que me impus. E não falo com muita experiência, uma vez que até hoje só consegui fazer uma receita de ostra quente. E é ela que vou dividir com vocês: ostras empanadas com tapioca marinada.
A brincadeira vem do óbvio, relacionar ostras e pérolas. Essa foi minha primeira inspiração. Em algum momento de minha vida, fiquei estarrecido ao ouvir que as bolinhas de sagu, feitas do amido da mandioca, eram chamadas “pérolas do Japão”. Meu ufanismo falou mais alto. Ver um ingrediente nosso atribuído a outras culturas me fez usar as bolinhas nessa receita. Quem fez sagu lembra que as bolinhas de tapioca são cozidas em vinho ou suco de uva. Elas adquirem certa melosidade, por ação do amido, que lhes confere textura ímpar, quase marinha.
As bolinhas também tomam a cor do meio de cozimento. E também seu sabor. O fato é que o líquido das ostras não tinha cor, tampouco água suficiente para cozinhá-las. Resolvi, então, pré-cozinhar as bolinhas e, em seguida, mariná-las com a água das ostras, suco de limão e uma pontinha de sal. As notas de ostras fixaram ali. E o sal e o limão deram um luxuoso auxílio, comparável ao do pandeiro e da cuíca num bom samba.
Mas faltava alguma coisa para servir junto. Comecei, então, a fazer testes de aproximação. E tanto no formato quanto nas notas marinhas, as ovas de salmão completavam bem o prato. Antes de chegar a elas, tentei combinações com vieiras, em saladas de frutos do mar. Mas nada fazia justiça ao sabor e à textura conseguidos. Voltei, então, a encarar meus preconceitos. E tentei descobrir como fazer uma ostra quente e interessante.
Lembrei-me do kaki furai, receita típica japonesa. E aqui é importante frisar que “furai” vem do inglês fry, ou seja, fritar. Experimentei, então, fazer as ostras fritas japonesas com aquela farinha de rosca típica do Japão. Ruim não ficou, mas me pareceu “zero” original. Daí, testei fazer o tempurá de ostra, ostra empanada e ostra à milanesa (vale a pena lembrar que milanesa é uma corruptela brasileira da cozinha italiana, mas não deixa de ter o italiano impregnado nela). Nada me emocionava.
Voltei ao tripé de sabor que combinava com ostra e me lembrei da laranja. E também do pão, que me renderia um bom empanado. Pão e laranja, igual a brioche. Fui à padaria e comecei os testes. Quem conhece brioche sabe que a casca é escura e o miolo é amarelinho. Por isso, antes mesmo de fritar, a farinha de brioche já tinha cara de queimada. Voltei à padaria, peguei outro brioche, tirei-lhe a casca e consegui, então, uma farinha amarelinha. Peguei outra parte da água de ostras, um pouquinho de ovo, empanei as ostras rapidamente e fritei-as em azeite de oliva. Fritei o suficiente para lhes dar cor, mas deixar o meio ainda bastante malpassado. Experimentei a ostra, já estava bem gostosa, mas ainda faltava uma pontinha de pimenta. Logo, Tabasco na ostra!
Com a entrada do Tabasco, um ingrediente ficou apagado: a laranja. Mas não dava para colocar suco de laranja. Resolvi, então, usar twists, ou a casca da laranja torcida sobre as ostras. A receita estava quase completa. Coube tudo junto, ostras com o twist de laranja, uma gota de pimenta, as tapiocas marinadas, com as ovas de salmão.
Sei que chegar à perfeição é impossível, mas acho que se aproximar ao máximo dela é uma obrigação. Ainda inquieto voltei à receita, fritei em azeite de oliva. Como não queria agregar uma nova nota de sabor, resolvi mantê-la, mas o azeite de oliva ainda não cumpria totalmente sua função. Aí, lembrei-me de uma outra cozinha, a coreana, que tem entre seus fundamentos a emulsão ou a combinação instável de shoyu e azeite de oliva. E, aí, cheguei ao ponto que queria.
Conto essa história por alguns motivos. Nesta edição especial de vinho quero falar de brancos, injustiçados, porque alguém ensinou que brancos não eram tão bons quanto tintos. O que não é verdade. Existem, sim, ótimos brancos. Às vezes um pouco mais caros do que eu gostaria, mas efetivamente bons. Quero lembrar também que o paladar é um sentido que educamos, que desenvolvemos, e aprender a tomar brancos é tão importante quanto aprender a beber tintos. Ao defender os brancos, advogo em causa própria. Afinal, a cozinha criativa anda de mãos dadas com os vinhos brancos.
Quero falar também do vinho branco de uma região muito especial da França: a Champagne. Além de um método, Champagne também é a região em que nascem as uvas. Logo, champanhes são vinhos brancos de uma região que tem esse nome. Bebida festiva, curinga para todos os dias. Hoje, bebemos champanhe para comemorar, para nos alegrar, bebemos champanhe até quando estamos sem alegria (e porque precisamos dela).
Esse vinho carrega uma centelha de felicidade. No universo dos espumantes, existe um outro mundo ao qual o champanhe também pertence: cavas, proseccos, espumantes propriamente ditos, os franciacorta e muitos outros. São variações de vinho branco espumante. Uma boa e fácil combinação para ostras são o champanhe e suas variações. Mas vamos pensar em algo diferente.
Vamos falar de outros vinhos brancos, os naturais. Naturais porque são feitos com método orgânico, muitas vezes até biodinâmicos. Nesse setor, queria destacar um vinificador chamado Philippe Pacalet que, por acaso (ou por competência), foi enólogo do Romanée-Conti. E em algum momento de sua vida, resolveu fazer vinhos naturais levando seu próprio nome. Abençoado seja esse senhor que nos brinda com brancos fáceis, afáveis, complexos, com preços praticáveis e, sobretudo, naturais. Dele indico para esse prato o Puligny Montrachet. Perdamos os resquícios de preconceitos. Seja de ostras quentes, seja de vinhos brancos, seja de achar que natural é diretamente proporcional a natureba.
Ingredientes
- Receita: Ostra empanada com tapioca marinada
(*) Alex Atala é chef e proprietário dos restaurantes D.O.M. e Dalva e Dito, em São Paulo