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Três estrelas Michelin à beira-mar: a cozinha de Quique Dacosta

À beira do Mediterrâneo, o restaurante de três estrelas Michelin de Quique Dacosta em Dénia transforma técnica e sensibilidade em uma experiência que une arte, história e sabor. 

Por Cecilia Padilha (@yeswecook)

Em Dénia, cidade costeira da Comunidade Valenciana, a uma quadra do Mediterrâneo, está um dos restaurantes mais emblemáticos da alta gastronomia espanhola. O Quique Dacosta Restaurante, detentor de três estrelas Michelin, é ao mesmo tempo laboratório criativo, obra viva e síntese da trajetória de seu chef. O espaço, luminoso e silencioso, traduz o equilíbrio que move Quique: a precisão técnica em harmonia com a emoção e o pensamento.

A experiência começa ainda no terraço, entre oliveiras e obras de arte contemporâneas. Ali são servidos os primeiros snacks, pequenas provocações que introduzem o espírito do menu — uma sequência que combina leveza, surpresa e rigor.

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Técnica, memórias e ingredientes locais_ a assinatura de Quique Dacosta / Por: Cecília Padilha @yeswecook

Logo no início, o clássico pão com tomate, símbolo valenciano, ganha uma leitura inesperada. À primeira vista, parece o tradicional “pan con tomate”, mas o que chega à mesa é outra coisa. O pão é feito de gordura e proteína, servido para comer de garfo e faca, enquanto o tomate aparece em forma de gel translúcido, puro sabor e conceito. É um gesto que resume o respeito à tradição aliado ao impulso de reinventá-la.

Entre os primeiros pratos, um dos momentos mais marcantes é o camarão vermelho de Dénia, ícone da pesca local, transformado em lamen oriental. A massa é elaborada com o próprio camarão, resultado de uma técnica. O caldo, profundo e delicado, traduz o sabor do mar com uma clareza rara. “A cozinha é o meio pelo qual me comunico com as pessoas”, diz Dacosta. “É minha linguagem natural, como o mármore é para o escultor.”

O “pan con tomate” é feito de gordura e proteína, para se comer com garfo / Por: Cecília Padilha @yeswecook

Essa visão acompanha toda a sua trajetória. Autodidata, o chef começou lavando pratos em um pequeno restaurante. Foi nos livros que encontrou sua formação — Michel Guérard, Joël Robuchon, a nouvelle cuisine francesa —, mas também nas pessoas e nos ingredientes à sua volta. “Nunca pensei em ser um cozinheiro artístico”, afirma. “Mas entendi que minha forma de aprender o ofício tinha uma dimensão criativa.”

Nos anos 2000, quando pouco se falava em alta gastronomia fora dos grandes centros espanhóis, Dacosta colocou Dénia no mapa culinário europeu. Sua proposta de uma “cozinha de autor enraizada em seu entorno” unia vanguarda técnica e memória local, antecipando debates sobre origem, sustentabilidade e identidade que só anos depois ganhariam força no mundo todo.

Delicadeza e sabores que surpreendem a cada garfada / Por: Cecília Padilha @yeswecook

Um dos pratos mais emblemáticos atuais é o atum curado por um ano em câmara de sal, com textura semelhante à do jamón e uma camada de gordura translúcida que derrete na boca. O ouriço-do-mar, colhido em áreas autorizadas da costa, é servido em contraste com ouriços japoneses — um diálogo entre mares e técnicas. Já a fideuá da montanha, feita com porco e cogumelos enoki, surpreende pelo sabor terroso e apresentação minimalista, reinterpretando o clássico valenciano.

Em determinado momento da refeição, o cliente é convidado a retirar um trevo de quatro folhas, que esconde um snack premiado — um gesto poético que mistura acaso e descoberta. Em outro, o camarão é servido inteiro, para ser degustado com as mãos, acompanhado de um consomê aromatizado com rosas.

O interior do restaurante é também parte dessa experiência. Obras de arte contemporâneas se misturam a uma arquitetura limpa, e a cozinha envidraçada, visível ao fundo, atua como palco de um espetáculo minucioso. A harmonização segue a mesma lógica: vinhos regionais feitos com uvas autóctones convivem com um Riesling da Alsácia, um Champagne vintage e até um Cabernet Sauvignon argentino. O objetivo, segundo o chef, é criar “a emoção perfeita entre o prato e o copo”, mais do que exibir rótulos. E fala com serenidade sobre o que considera essencial: a autenticidade e a arte. “O produto local é a base de tudo”, diz. “Sem ele, não há verdade na cozinha.” E completa: “Cozinhar é uma forma de comunicação. O que busco é conexão.”

Essa dimensão artística — que ele descreve como “a oitava arte” — surge não como pretensão, mas como expressão natural de um pensamento que ultrapassa o ato de cozinhar. “A dança, a música, a arquitetura e o cinema abraçam a gastronomia”, diz. “Eles nos permitem sentar à mesa como parte desse mesmo diálogo.”

A área externa, repleta de obras contemporâneas, prepara o comensal para a experiência que está por vir / Por: Cecília Padilha @yeswecook

Mais de trinta e cinco anos depois de entrar pela primeira vez em uma cozinha, Quique Dacosta mantém o mesmo olhar inquieto e experimental. Cada temporada do restaurante é concebida como uma nova coleção, com começo, meio e fim, e nunca se repete. O menu atual, “Por amor al arte”, propõe um diálogo entre disciplinas criativas e ingredientes locais, reafirmando a cozinha como uma forma de pensamento.

Com o tempo, seu discurso ganhou a serenidade de quem entende a profundidade do próprio ofício. “O reconhecimento é importante, claro”, admite. “Mas o essencial é seguir sendo interessante para meus colegas e para o cliente. Criatividade é responsabilidade.”

A poucos metros do mar, o cozinheiro transforma técnica em poesia. Seus pratos não buscam apenas deslumbrar — buscam tocar. E quando isso acontece, percebe-se que sua cozinha não fala apenas de ingredientes, mas de recordações, cultura e emoção. Um banquete de ideias e sensações, feito à beira do Mediterrâneo, que segue inspirando e gerando memórias em quem passa por lá.

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