Vinhos

Vinho versus cerveja

POR RICARDO CASTILHO

Harmonizar comida e bebida é sempre uma gostosa experiência quando se tem disposição para testar e buscar a combinação ideal. A inspiração para esta reportagem vem do livro He Said Beer, She Said Wine (sem tradução no Brasil), dos americanos Sam Calagione e Marnie Old, que, de forma instrutiva e bem-humorada, mostram situações em que a cerveja e o vinho são convocados.

Com essa idéia em mente, convidamos o chef Rodrigo Martins, da Vino de São Paulo, para criar um cardápio com pratos de diferentes intensidades de aromas e sabores para serem harmonizados com as duas opções. Para que fossem bem representadas, pedimos ao colunista Jorge Lucki que fizesse a seleção de vinhos; e ao colaborador e expert Cássio Piccolo, do bar Frangó, de São Paulo, que escolhesse as cervejas.

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Além disso, cada um foi responsável em fazer uma análise mais profunda das harmonizações. Quatro apreciadores (veja quadro) também participaram da experiência. Como numa verdadeira disputa de Fla x Flu, em que cada torcida sempre acha que seu time é o melhor, houve discordâncias e unanimidades. Portanto, com as receitas e a lista das bebidas em mãos, sugiro que você também reúna os amigos e faça sua própria prova. Afirmo que é prazer garantido. Saúde e bom apetite!

Pontuação:
• Divórcio
•• Combinação ruim
••• Não compromete
•••• Boa combinação
••••• Ótima combinação

Questão de afinidade

Por Jorge Lucki

Há os que, de maneira geral, gostam mais de vinho enquanto outros pendem para a cerveja. Na medida em que paladar é muito subjetivo, não há como discutir preferências. No entanto, quando se fala em harmonização com comida, as chances de sucesso com vinho são, sem bairrismo, bem superiores. A questão tem a ver com as próprias características da cerveja, em particular, seu conhecido toque de amargor e o gás, que acentua o frescor – vale para qualquer tipo e ingredientes que entrem em sua elaboração.

Tais atributos pedem receitas mais gordurosas e/ou condimentadas, limitando bastante as opções de pratos que aceitam essa combinação. Não é, então, por acaso, nem apenas pelo ambiente descontraído, que cerveja é “a” bebida dos botecos, casas especializadas na simpaticamente chamada “baixa gastronomia”. Dentro desse contexto, não é surpresa, a meu ver de, em quase todos os casos, os vinhos terem tido mais afinidade do que as cervejas com o menu escolhido para a experiência. A seguir minha visão do que ocorreu.

Ponto para a cerveja

Por Cássio Piccolo

Vinho e cerveja são as duas bebidas fermentadas mais importantes do mundo, derivadas da uva e do grão, respectivamente. Atualmente, estão mantidas separadas por certo esnobismo social injustificável. Acredito que uma cerveja cuidadosamente escolhida é tão boa companhia para a comida quanto o vinho e, muitas vezes, até melhor. Muito do preconceito que se tem em relação à cerveja é devido ao mercado fechado durante décadas e direcionado a um tipo único de bebida, sem qualquer outro atrativo a não ser o de matar a sede, com pouca complexidade, cor, aroma e sabor.

Muitos apreciadores de cerveja não conhecem suas variações e a maioria dos amantes do vinho nem desconfia que, além das diversas uvas e produtores, existe uma gama de cereais, variedades de lúpulo, frutas, condimentos e especiarias de toda ordem que são utilizados na produção de cervejas desde a Antiguidade.

Diferente do vinho que depende do seu terroir e deve ser vinificado próximo à região de cultivo das uvas, a boa cerveja pode ser produzida em qualquer lugar do mundo, uma vez que as matérias-primas raramente sofrem danos com transporte. Hoje, a tecnologia permite até mesmo a alteração da água para a composição ideal de um produto e há muitos chefs ao redor do mundo que estão, finalmente, desafiando a presunção de que apenas o vinho é apropriado para cardápios requintados.

Bons restaurantes, e não apenas bares, já têm cartas de cerveja e seus clientes mergulham na experiência criativa de descobrir as opções desse “luxo acessível”, cujos atributos podem realçar ou contrastar com os sabores de um prato. Muitos consumidores não pedem só mais uma cerveja e a indústria está ampliando seu leque de opções gourmet.

Em face dos milhares de rótulos de vinhos, a oferta de cervejas premium ainda é pequena, mas estimulante. Esse cenário vem mudando gradativamente no Brasil, graças a importações criteriosas e a várias microcervejarias e homebreweries brasileiras já premiadas, inclusive, em festivais internacionais. Gosto das duas bebidas e esta foi uma oportunidade de harmonização instigante, em que o parâmetro, no meu caso, não foi rivalizar e sim agregar valor à experiência de unir boa comida e boa bebida.

Carpaccio de salmão defumado ao citron

Cerveja: A austríaca Hopfen König/Eggenberg se mostrou uma combinação muito boa com o prato leve. Equilibrada entre o aroma e o gosto defumado do salmão, com o amargor típico desse estilo de cerveja lager, dourada e brilhante. Tanto o limão quanto o azeite realçaram a característica lupulada e o frescor dessa cerveja que desperta o apetite.
Harmonização: O vinho The Straits 2007 não comprometeu o sabor do carpaccio de salmão. No entanto, por ter como característica seu poder aromático, sobressaiu em demasia, relegando o peixe a segundo plano. Na boca, prevaleceu uma sensação de secura.
Vinho: •••
Cerveja: •••••

Atum ao azeite extravirgem com bottarga

Cerveja: Ponto para uma brasileira, produzida em microcervejaria. A Lust Prestige, apesar de ser levemente adocicada, devido à sua carbonatação, tem final agradável de “boca limpa”. Apresenta frescor junto ao atum que também possui similaridade no gosto. A bottarga, embora de sabor intenso, não interferiu no resultado.
Harmonização: O Leyda Chardonnay provocou
um grande divórcio com o atum e também com a bottarga. A madeira do vinho deixou uma sensação final desagradável de amargor intenso.
Vinho:
Cerveja: ••••

Polenta cremosa com ragù de ossobuco e agrião

Cerveja: A Maredsous 8, produzida na Bélgica, fez uma excelente combinação. A conjunção de aromas e sabores dessa cerveja escura e do prato criou uma nova sensação, fruto da perfeita simbiose entre ambos. O gosto maltado e tostado da bebida, assim como o teor alcoólico (8%), harmonizaram-se magnificamente com o sabor acentuado e substancioso do ragú de ossobuco.
Harmonização: Outro divórcio com o vinho, dessa vez com o Fiano di Avelino 2006. O branco adocicado não resistiu à harmonização e desapareceu completamente em face do sabor marcante do ossobuco. Aqui está um típico casamento em que um só parceiro tem voz. Litígio na certa.
Vinho:
Cerveja: •••••

Gnocchi de mandioquinha com carne-seca e alho-poró

Cerveja: La Trappe Tripel fez boa combinação. De coloração semelhante ao gnocchi, instiga o paladar com o lúpulo de aroma e sabor condimentados que casam bem com o alho-poró e a carne-seca. E não se anulam mutuamente.
Harmonização: Com o Salton Talento 2004, aconteceu outro pequeno divórcio. A leveza da massa, mesmo estando acompanhada da carne-seca, fica comprometida pelo gosto pronunciado que domina a relação.
Vinho: ••
Cerveja: ••••

Paleta de cordeiro ao forno a lenha com risoto de castanhas-do-pará e hortelã

Cerveja: Aqui, a Chimay Grande Reserve 2007 fez uma boa combinação. A cerveja possui notas de frutas secas que se harmonizaram perfeitamente com o risoto, mas seu gosto ficou à sombra do denso molho do cordeiro com hortelã.
Harmonização: O Barbaresco Reyna 2005 foi excelente combinação com o prato. Um dos meus vinhos e pratos prediletos que, sem dúvida, formam um casal ideal, daqueles que se respeitam e que não discutem por bobagem.
Vinho: •••••
Cerveja: ••

Torta de grãos com açúcar mascavo e sorvete de coco

Cerveja: Aqui, com a Thomas Hardy’s 2007, o divórcio foi certo. Essa é uma Barley Wine de guarda que possui em sua receita uma quantia extra de lúpulo, conservante natural que preserva sua vida por até 25 anos. O “vinho de cevada” mostrou-se interessante junto à torta de grãos, mas teve seu sabor amargo muito realçado quando degustada com o sorvete de coco, com resultado fatal de total incompatibilidade de gênios.
Harmonização: Brumaire Novembre 2000 – combinação muito boa. O teor de açúcar do vinho e sua idade foram favoráveis e fundamentais para manter o equilíbrio da relação. O sorvete de coco, com seu ímpeto juvenil, não desestabilizou a maturidade do vinho. Ao contrário, rejuvenesceu a sensação provocada, fazendo um final menos doce e com mais frescor.
Vinho: •••••
Cerveja:

Foto Ricardo D’Angelo / Produção Camile Comandini

Gnocchi de mandioquinha com carne-seca e alho-poró

4 porções

Massa
200 g de mandioquinha (purê)
50 g de farinha de trigo torrada
1 ovo
Manteiga sem sal o quanto baste

Molho
150 g de carne-seca desfiada
50 ml de azeite extravirgem
50 g alho-poró cortado bem fininho
Manteiga; cheiro-verde; sal; pimenta-do-reino preta moída na hora a gosto

Massa
1 Misture os ingredientes até que a massa fique homogênea. 2 Faça bolas, estire-as em tiras e corte-as em pedaços de 1 cm. 3 Em uma panela com água fervente e sal, cozinhe esses pedaços até que subam à superfície.

Molho
1 Numa frigideira, faça suar os ingredientes. 2 Misture com o gnocchi e sirva.

Paleta de cordeiro ao forno a lenha com risoto de castanhas-do-Pará e hortelã

1 paleta de cordeiro (900 g) com osso
25 g de cebola
25 g de cenoura
25 g de alho-poró
25 g de salsão
100 ml de vinho branco seco
Ervas frescas (alecrim, tomilho, louro)
Sal
Pimenta-da-jamaica a gosto

Risoto
150 g de arroz carnaroli
50 g de cebola picada bem miúda
100 ml de vinho branco seco
300 ml de caldo de legumes
Sal e pimenta a gosto
50 g de queijo parmesão ralado
50 ml de azeite extravirgem
50 g de manteiga fresca sem sal
50 g de castanha-do-pará picada grosseiramente

Carne
1 Tempere (marine) a paleta de um dia para outro; leve ao forno a lenha brando, asse por mais ou menos 2 horas até ficar macia e levemente dourada.
2 Reserve o suco da assadeira para fazer o molho.

Risoto
1 Numa panela, faça suar a cebola com manteiga, arroz e vinho branco; mexa sem parar e acrescente o caldo em três vezes, durante 15 minutos, em fogo médio.
2 Finalize com queijo e azeite; ajuste os temperos e sirva.

Molho
1 Coe o suco que ficou na assadeira numa panela; leve ao fogo baixo e reduza.
2 Finalize com no máximo 20 g de manteiga fresca; ajuste os temperos e sirva.

Polenta cremosa com ragù de ossobuco e agrião

4 porções

Polenta
100 g de polenta bergamasca (italiana)
300 ml de água
1 folha de louro (fresca)
Sal a gosto
Pimenta-do-reino a gosto
50 g de queijo parmesão ralado
50 g de manteiga fresca sem sal
50 ml de azeite de oliva extravirgem

Ossobuco
300 g de ossobuco de boi (novilho)
100 g de mirepoix (cebola, cenoura, salsão, alho-poró) – 25% de cada um
50 g de manteiga fresca
Tomilho e alecrim a gosto
Sal e pimenta-do-reino moída na hora (preta) a gosto
500 ml de vinho tinto seco

Ossobuco
1 Em uma panela, coloque a manteiga e faça suar o mirepoix e o ossobuco.
2 Junte o vinho tinto e cozinhe em fogo baixo ou ao forno por cerca de 3 horas a 120ºC; solte a carne do osso, finalize ajustando os temperos.

Polenta
1 Em uma panela, misture a polenta com a água e o louro e leve ao fogo baixo por cerca de 40 minutos, mexendo sem parar.
2 Finalize com os demais ingredientes, ajustando o tempero até que fique cremosa e suculenta; sirva em seguida, com a carne.

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Prazeres da Mesa

Lançada em 2003, a proposta da revista é saciar o apetite de todos os leitores que gostam de cozinhar, viajar e conhecer os segredos dos bons vinhos e de outras bebidas antecipando tendências e mostrando as novidades desse delicioso universo.

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