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Vinhos de garagem

(*) POR JORGE CARRARA

Vins de garage. A expressão francesa define uma elite de vinhos elaborados em quantidades minúsculas em vinícolas de tamanho idem, às vezes literalmente instaladas no espaço que abrigava carros e maquinarias numa propriedade. Ah!, sim, muito importante: em geral têm preços astronômicos – e performance nem sempre à altura. Militam nesse time rubros como o francês Château Valandraud ou o californiano Screaming Eagle. A Espanha, talvez no embalo de sua prosperidade econômica e no sucesso de projetos como o do Pingus, do enólogo Peter Sisseck (aliás, belo tinto, reconheço, em todas as safras que tive a sorte de degustar), tem sido o berço de um bom número desses “vinhos de autor”, ou de expresión.

São Paulo foi palco semanas atrás de uma prova que contou com um desses exemplares ibéricos (oferecido no evento pela bagatela de R$ 1.850 a garrafa), apresentado pelo enólogo (e proprietário) da vinícola que o elabora. Nada que o desabone, muito pelo contrário, afinal, ele assinou os vinhos de uma das adegas de ponta de seu país por cerca de 15 anos antes de iniciar vôo-solo. Tampouco nada contra o tinto, denso, concentrado, com fruta limpa e bem definida, mas que, confesso, não me deixou em êxtase, nem me fez atravessar, levitando, as portas do paraíso etílico, façanhas que, goles com esse preço deveriam, imagino, ser capazes de conseguir.

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Não é a primeira vez que constato isso (até o Screaming Eagle foi protagonista de duas situações similares) e sempre os mesmos pensamentos me vêm.
Em primeiro lugar, é bom ter presente que seja qual for o preço do vinho, 2.000, 3.000, 5.000 reais ou mais, avaliado, por exemplo, numa escala de zero a 100, nunca, eu garanto, nunca mesmo, ele vai passar dos 100 pontos. Garanto também – e a experiência demonstra – que, muitas vezes, ele nem vai se aproximar da marca tanto quanto se esperaria.

Em segundo lugar, convém igualmente lembrar que a indústria vitivinícola do planeta – com novos clones e viticultura de precisão no campo e tecnologia de ponta e cuidados extremos nas adegas – evoluiu brutalmente nos últimos anos. Por isso, hoje é possível encontrar vinhos dez ou 20 vezes mais baratos e com desempenho apenas 1 ou 2 pontos abaixo – ou até igual – ao de algum desses ícones.

A própria Espanha tem uma boa coleção (entre eles o Muga Reserva 2003, publicado na última coluna, 91/100, R$ 83,18, na Epice). E o Novo Mundo também, como os tintos das três vinícolas listadas a seguir, que vieram à minha mente naquela noite, enquanto tentava decifrar por que custava tanto aquele vinho.

Bodega Renacer, Mendoza, Argentina. A vinícola de Perdriel, sul da cidade de Mendoza, pertence aos enólogos Hector Durigutti (que trabalhou em bodegas como Banfi e Altos Las Hormigas) e o italiano Alberto Antonini (ex-Antinori). Brilha entre os vinhos da casa o Punto Final Reserva 2005 – corte de uvas Malbec (96%) e Cabernet Franc, com estágio de dez meses em barricas de carvalho francês –, um vinho sedoso, que surpreende no nariz e na boca com notas intensas de frutas vermelhas maduras, tabaco, caramelo e baunilha, que se fundem num final persistente (91/100, R$ 89, Terramatter).

Glaetzer Wines, Barossa Valley, Austrália.
Empresa familiar, criada em 1995, que tem Collin Glaetzer, um de seus donos (ex-Tyrrel’s, ex-Seppelt), e o filho Ben (enólogo também, da Heartland e da Mitolo) como winemakers. O portfólio da casa conta com vinhos untuosos, plenos de fruta e sem exagero na madeira.

Vale a pena conferir dois deles, da safra 2005. Um é o Wallace Shiraz (70%) e Grenache, com 14 meses em barris de carvalho francês e americano, com perfume atraente (geléias, groselha) e paladar redondo e longo, em que volta a fruta temperada com suave madeira (91/100, R$ 95).

O outro é o Bishop, um Shiraz elaborado com uvas de vinhedos com cerca de 60 anos de idade, que impressiona pelo paladar concentrado (frutas vermelhas, coco, baunilha, especiaria), envolto em taninos finos e com deliciosa persistência (92/100, R$ 150, ambos na Grand Cru).

Loma Larga, Vale de Casablanca, Chile.
A vinícola possui cerca de 148 hectares de vinhas em Casablanca, ao norte de Santiago, que abrigam nove variedades, entre elas Sauvignon Blanc, Chardonnay e Pinot Noir, cepas que têm brilhado no clima moderado do lugar. Mas o destaque da adega fica por conta de um Syrah, o Loma Larga Block L 2004, um tinto amplo, com bela complexidade no aroma e na boca (framboesa, pimenta-do-reino, baunilha, tons defumados), boa textura e densidade, um vinho sedutor à altura de um (bom) Hermitage (93/100, R$ 140, Terramatter).

Aliás, foi precisamente essa nota, 93/100, que dei ao vinho do início da história (sim, aquele de R$ 1.850 a garrafa) que, segundo o enólogo me explicou na ocasião, tinha nascido na vinícola por ele instalada (adivinham onde?) na garagem, é claro, da casa de seus pais.

(*) Jorge Carrara é colunista de vinhos do jornal Folha de S. Paulo e do site Basilico

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